Crítica | Desobediência

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E se Deus fosse um homem careca e cheio de tatuagens?

Esse foi meu primeiro pensamento ao assistir “Desobediência”, enquanto a personagem de Rachel Weisz fotografava um senhor com essas características. Eu sabia do que o filme se tratava, então o pensamento só passou pela minha cabeça, do nada. Afinal, construímos as nossas sociedades, e seus valores morais, em crenças que, bem, surgiram do ar.

Tendo feito este apenas um ano após “Una Mujer Fantástica”, Sebastián Lelio parece ser um cineasta com um olhar raro para retratar personagens femininas (digo parece pois só vi estes dois filmes de sua carreira): delicado na maneira de retratar os sentimentos e desejos das duas, Lelio jamais se entrega a um fetiche masculino, transformando o relacionamento delas em uma fuga, em algo quase puro, espiritual e onde a cena de sexo - capitalizada por um momento surpreendentemente íntimo onde Weisz… assistam - surge justamente como o ápice dessa libertação. Curioso é como mesmo durante o momento a mise-en-scène não dá trégua, sendo que a mesma falta de vida nas cores, a mesma esterilidade visual parecem nunca abandonar as duas protagonistas, tornando o trabalho das atrizes algo ainda mais complexo e admirável.

Talvez a maior qualidade do filme esteja não em mostrar o relacionamento das duas, mas como estas estão presas a todos os momentos por uma cultura retrograda e machista, como Lelio evidencia ao constantemente seguirmos Weisz em suas caminhadas, cuja liberdade fora conquistada a força, mas apresentando McAdams em um jantar com planos mais burocráticos, parados, que reforçam a falta de energia presente mesmo nas relações familiares - gosto, particularmente, da forma como é sempre sugerido que tem alguém a espreita e que ninguém é de confiança. E por mais que ele jamais julgue aqueles costumes, mas nos convide a fazê-lo, ao construir um mundo sem vida na volta das duas é como, novamente, se o relacionamento de ambas seja algo não apenas necessário, mas natural e entendível.

Porém, se as duas produzem uma química inegável em tela, e que contrasta com a transa impessoal que Weisz tem com um qualquer em um restaurante e a robótica que McAdams tem com o marido, sinto como se aquela semente jamais fosse plantada, pois do nada descobrimos que ambas tiveram um caso e instantaneamente se entregam a este - pode ser meu olhar masculino, menos perceptivo, mas achei que a relação das duas se originaria de outra maneira. Além disso, o tom é inconstante. Se por horas é algo depressivo, até aborrecido, em outras é como se Lelio tentasse aliviá-lo, ficando em cima do muro (pra não dizer que se acovarda) e nunca abraçando nem o melodrama nem a ousadia presentes na narrativa. O próprio personagem de Alessandro Nivola (que está ótimo) é retratado de maneira inconstante: por horas parece que vai explodir, por horas parece irredutível, mas no fim tem uma redenção quase boba - de novo, não seria problema se o filme assumisse essa faceta.

“Desobediência” poderia ser mais, olhem só, desobediente, pois no fim consegue entregar um pouco de tudo que queria mostrar, mas parece nunca se entregar de verdade ao que queria falar.

7.3

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