Crítica | Trilogia das Cores: Azul

critica trilogia das cores azul

Em sua primeira cena, como não poderia deixar de ser, vemos uma mão segurando um plástico azul pela janela. Em várias outras, vemos portas, doces, pastas, candelabros, a própria luz. O azul faz parte do mundo, inclusive, é sua cor principal se visto de longe, e quando o título do filme o menciona, nossos olhos tendem a procurar significado em qualquer pixel azul que enxergamos na tela.

Mas na primeira parte desta trilogia baseada nos ideais franceses (com as cores da bandeira), o azul assume uma função muito mais espiritual do que impositiva: Julie quer fugir desse azul, justamente por ser a única coisa que segue lhe relembrando de toda a dor causada pelo trágico acidente que a fez perder marido e filha. Em um momento, ela devora um pequeno doce que encontra na bolsa e segura um choro, em outro, ela quebra um candelabro (ou o que quer que seja aquilo) em pedaços. E essa fuga, ou também luta, é uma representação dolorosa de se assistir do luto, que a faz enxergar o mundo que ficou após o acidente como um lugar do qual gostaria de sentir indiferença, mas que segue a jogando de volta seja por todos estes objetos e utensílios, seja pela própria piscina onde nada e prende a respiração embaixo d'água - e a cena onde claramente fica incomodada com a presença de crianças e depois decide nadar de noite é um momento mínimo, mas evidente de seu estado de espírito.

A direção de Krzysztof Kieślowski é precisa ao utilizar dessa necessidade da personagem de se desprender como algo que simplesmente extrai todo o potencial dramático de acontecimentos que poderiam ser chocantes. Quando ela descobre algo do passado do marido, não consegue evitar em se relacionar com o que resta dele, mesmo que isso que resta seja o ódio. Quando é mergulhada no vermelho sufocante do clube de strip e vemos uma menina chorar por ter visto o pai na plateia, chega a ser difícil entender o que Julie faz ali. Afinal, Juliette Binoche a encarna com toda essa necessidade de se retrair, de se excluir do mundo, mas de certa maneira ainda é possível perceber como, no fundo, ela segue sendo um ser repleto de emoções, que não hesita em ajudar alguém necessitado ou de tentar entender, ou escutar, as dores de outros mesmo que sejam infinitamente inferiores à sua.

Utilizando a música como outro elemento inerente da narrativa, é possível entender também a conexão emocional de Julie com o marido pela maneira como ela aborda as composições deixadas por este, criando ainda um triângulo complexo com Olivier, em uma escala emocional, intelectual e artística. Apontado por muitos também é o fato de que Julie simplesmente não pode fugir dos sons ao redor, um empecilho que frequentemente a tormenta e que é, justamente, o maior “legado” do marido compositor. Já os fades que vão para o preto e retornam me parecem uma inversão dos jumpcuts de Godard, sendo que parecem cortar para um instante mínimo a seguir que, de acordo com o próprio Kieślowski, evidenciam como o tempo fica parado para ela em certos momentos - geralmente quando, acredito, pensa no marido e na filha e que, ainda por cima, parecem alongar ainda mais momentos que ela gostaria que passassem mais depressa.

Talvez ainda mais angustiante seja como a liberdade - a cor Azul da bandeira Francesa - é retratada como algo assombroso. Pois Julie, ao não ter mais - ou não querer ter - qualquer relação que a prenda, se torna livre (como diria Tyler Durden: é só quando se perde tudo que você está livre para fazer tudo) e é curioso como algumas cenas a mostram abraçando essa liberdade desoladora, mas em outras é como se quisesse voltar a se prender, algo que, por si só, também pode representar uma espécie de libertação emocional do luto. A Lucille (interpretada por Charlotte Véry) a diz que não usa roupas íntimas, representando uma libertação social, sexual. Ao vender a casa e comprar um apartamento impessoal e ao recusar o pingente que o menino que a resgatou no acidente lhe entrega, ela se liberta materialmente. Ao se reconectar com Oliver, ela se liberta afetivamente. Por fim, ao finalizar a composição do marido, ela se liberta intelectual e artisticamente.

Mas se essa necessidade de libertação sequer existe, é por conta de toda a dor e sofrimento pelo qual Julie teve de passar. Por isso, por mais que ela siga em frente, a única reação que poderia terminar com este exaustivo filme é o choro, de alguém que fez de tudo para não precisar voltar a ele. E que, como muitos de nós, falhou.

8.5

Anterior
Anterior

Crítica | Stowaway

Próximo
Próximo

Crítica | Desobediência