Crítica | Bo Burnham: Inside

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Tenho um amigo praticamente idêntico à Bo Burnham (uma daquelas pessoas cujo talento é ter vários) e assistir isso foi ainda mais assustador por conta dessa semelhança.

Músico, ator, comediante, Burnham faz um pouco de tudo e embora não seja genial em nada, cria aqui uma obra que julgo ser um dos primeiros exemplos de algo que talvez chamamos de Cinema Neo-Moderno (ou qualquer coisa do tipo) no futuro. Vocês lembram de “The Life of Pablo”, sua capa feita no paint e sua estrutura caótica e incompleta que representava a instabilidade das nossas emoções e nosso imediatismo perante a um mundo que, graças a internet, sabemos que nunca dorme? É. Nessa base.

Não que se assemelhe… aliás, sim, se assemelha. Tendo sido inteiramente feito durante a quarentena como válvula de escape para Burnham - que escreve, dirige, estrela, edita, etc. -, “Inside” trás uma obviedade em seu título que logo transpõe para a tela: tudo o que vemos é ele em meio às paredes de um quarto minúsculo, lotado com equipamentos desorganizados, mas vazio o suficiente para refletir o estado que alterna entre a tensão e o tédio eterno no qual nos encontramos durante esse período - pelo menos aqueles que respeitaram a quarentena. Algo que o próprio fantoche de meia fala: para aqueles que tiveram todas as suas atividades paralisadas (como é o meu caso) ficar em casa era como estar em um limbo, como (assim como Burnham aponta) se houvéssemos morrido em Março de 2020 e estivéssemos esperando para renascer.

Inclusive, acho que este é o único filme (porque também é isso) que foi feito para ser assistido da tela do computador, ou do celular, no isolamento e na solidão.

Por tudo isso, o especial poderia muito bem ser algo melancólico, depressivo, mas aí entra o talento variado de Burnham, que cria músicas mais ou menos engraçadas, as canta apenas suficientemente bem e utiliza de uma série de elementos de edição e pós-produção que você pode aprender no YouTube para transformar “Inside” em uma experiência transcendental, metalinguística e, apesar de propositalmente caótica, coesa e condizente com o estado mental e social que procura refletir.

Individualmente, estamos fodidos, sendo bombardeados com #s de Instagrams de mulheres brancas, tentando ensinar nossos pais a mexer no celular, percebendo que eles já sabem mexer, mas não sabem se comunicar por internet, sofrendo pela necessidade de contato físico que se torna uma conversa supostamente sensual, mas que não passa de uma série de figurinhas toscas com alguém desconhecido que não liga pra nós na mesma proporção que não ligamos de volta. Temos aqui um jovem talentoso fazendo algo de valor, mas assistir alguém reagindo à um trailer (essa cena pode muito bem ser o ápice do especial) ou falando qualquer coisa enquanto joga um videogame é mais atrativo. Nem queremos jogar mais, não queremos experienciar, mas sim ter tudo mastigado em nossas mãos.

Socialmente, estamos perdidos, rumando a um inevitável fim que se aproxima enquanto uma porção gigante da humanidade acredita em cloroquina, mamadeira de piroca e Terra Plana, mas rejeita a ideia de que logo logo essa bola gigante onde moramos vai se transformar em um bolinho flambado. Por isso, mesmo que divertido e irreverente, “Inside” traz à tona a ansiedade que muitos de nós sofrem sozinhos, se tornando, novamente, uma obra singular que te deixa triste enquanto te faz rir.

As incertezas presentes nessa geração também se tornam palpáveis no momento que Burnham faz piada com coisas que sabe que não deveria fazer, e questiona se deveria fazê-las. Seu privilégio branco sempre foi assunto de seus shows, e aqui não é diferente: ao questionar se tem direito e criticar a própria branquitude, ele questiona o próprio questionamento (quando ele menciona Sandra Bullock em Um Sonho Possível, simplesmente perdi tudo). No já comentado vídeo de reação, o efeito paradoxal é incrível, mas mais ainda é como a cada nova camada que se cria ele questiona o que a última falava.

Mas o momento mais intenso de “Inside”, ao menos para mim, acontece quando Burnham senta e espera por dois minutos que o relógio bata meia noite e ele tenha, oficialmente, 30 anos. Uma convenção humana baseada na rotação da Terra que importa tanto pra maioria de nós, e que naturalmente gera pontos de chegada que nos fazem questionar se chegamos com méritos e nos perguntar a clássica e clichê frase: o que fiz da minha vida até aqui?

E é assustador perceber, como membros da geração Z (ou qualquer que seja a minha ou a sua), que não somos mais os mais jovens da sala, que o tempo para criar está acabando, que logo seremos ultrapassados e considerados da mesma maneira que consideramos os Boomers hoje por crianças que ainda nem se limpam sozinhas. O mundo é um lugar terrível e vai atacá-lo, estar em casa pode proteger o seu corpo, mas não sua mente. Ao perceber isso, um vazio se instala em Burnham - e em mim, e talvez em você - e esse vazio provoca um silêncio ensurdecedor que o faz se perguntar no fim do dia: porque?

Pelado e vulnerável na nossa frente próximo de seu final, o vemos também saindo de casa e desesperado para voltar. E se tudo isso que nos espera lá fora for ainda pior do que o que reside aqui dentro?

A maneira como encaramos essa pergunta pode muito bem determinar como chegaremos no próximo ponto de chegada. No momento, vivos parece ser o bastante.

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