Crítica | Spencer

A Vida Solitária de uma princesa se torna um brutal estudo de personagem.

A Princesa Diana de Gales foi uma das principais figuras públicas do Século XX, sua imensa popularidade foi foco de atenção da mídia explorando enredos internos da família real britânica, sua relação conturbada com seu marido e especulações da relação de Diana com a coroa marcaram sua imagem e até hoje colocam suspeitas sobre o acidente que causou sua morte em 1997. Mas além disso, ela se tornou um ícone da cultura pop constantemente referenciada no cinema, na TV e no teatro, e foi martirizada pela mídia ao contrário do que aconteceu com seu ex-marido Charles, que sempre foi muito impopular. “Spencer” busca encontrar a subjetividae de Diana frente a tensa relação dela com sua família e o conflito disso com o amor que sente pelos filhos, o diretor Pablo Larraín (“No”, “Jackie”) junta forças com o roteirista Steven Knight, famoso por seu trabalho em “Peaky Blinders” e uma estupenda atuação de Kristen Stewart para nos levar em uma jornada psicológica ao longo dos dias 24, 25 e 26 de dezembro de 1991 no natal da família real britânica, o filme usa muitos recursos cinematográficos e narrativos para aproveitar cada uma das suas cenas e nos colocar dentro da experiência da protagonista misturando técnicas de diversos gêneros como thriller e comédia, tudo isso se sustenta a partir da capacidade técnica de Stewart que aparece em todas cenas do filme e mexe com as emoções do público a cada pequeno movimento que faz, como a grande atriz que é.

Toda trama de “Spencer” se passa em torno da Casa Sandringham, casa de campo propriedade da rainha inglesa, onde a família real passa o natal, o primeiro local da imensa residência que o filme apresenta é a cozinha criando uma imagem panorâmica vertical de cima a baixo que indica a relação entre os donos da casa e seus empregados, mas uma placa perto ao teto do ambiente é destacada com os dizeres: “faça silêncio, eles podem te ouvir”. Essa é a maneira escolhida pelo roteiro de apresentar um dos temas centrais da história, tudo que Diana fala, faz e até pensa tem repercussões entre “eles”, que servem como um antagonista oculto, por vezes o filme dá a entender que se trata da rainha, outras vezes é Charles ou o major Alistair (Timothy Spall), responsável por manter todos acontecimentos na casa de acordo com a tradição, nitidamente, porém, a entidade posta em oposição à protagonista é bem mais profunda que uma pessoa ou um grupo delas, na verdade são vários costumes e práticas da coroa que no fim das contas colocam em choque duas versões da protagonista: Diana, a princesa de Gales contra Diana Spencer (nome da família da personagem) e é esse conflito que vemos por horas espreitando e outras perseguindo ela ao longo de “Spencer”. Um artifício utilizado para contar a história de Diana é invocar a figura de Ana Bolena, rainha da Inglaterra que foi executada em uma armação da Coroa de seu marido Henrique VIII para que ele se casasse com Jane Seymour, essa imagem é produzida a partir de uma biografia de Bolena encontrada por Diana no seu quarto quando chega em Sandringham e ao longo da película a antiga rainha surge em sonhos e alucinações da protagonista que se identifica cada vez mais com ela.

A ousada proposta do roteiro e da direção em “Spencer” é alternar cenas com diversos impulsos subjetivos diferentes sobre a protagonista o que é habilitado a partir do trabalho de Stewart, a parte dita, visível dos conflitos da protagonista poderia soar rídicula e afastar o público, pois a maioria delas gira em torno das roupas escolhidas para ela usar em cada etapa do natal família e a pressão para chegar na hora nas refeições realizadas na casa. Outro símbolo visual das disputas internas e externas de Diana é o colar de pérolas que ganha de presente de Charles, a personagem em vários momentos fala sobre como ele deu um colar igual para a sua amante, em uma cena brilhante e dolorosa vemos Diana imaginando que está arrancando o colar no meio da janta e comendo as pérolas com uma colher. A relação da protagonista com a comida na casa é um ponto importante da trama também, os únicos amigos dela na casa são funcionários e um deles é o chefe da cozinha Darren (Sean Harris) que faz questão de preparar pratos pensando nos gostos de Diana e a aconselha sobre como a casa é traiçoeira e Maggie (Sally Hawkins) responsável por vestir a princesa e é sua amiga e conselheira, aliás, se há alguma vontade do roteiro de definir o filme em três atos é justamente Maggie que faz essa estrutura aparecer, o segundo ato começa quando ela vai embora da casa por ordem “deles” e é nesse momento que Diana rompe profundamente com a família real, por sua vez, o terceiro ato começa na volta da personagem, essa é a maneira que o roteiro demonstra a popularidade da princesa com a população comum britânica em oposição a maneira que sua família a vê. Outros personagens fundamentais são Harry e William, os dois princípes são o último vínculo da protagonista com a casa, a coroa e família as únicas pessoas com quem ela se sente confortável em comemorar o natal, isso é demonstrado em diversas cenas, mas uma brincadeira dos três a luz de velas no começo do segundo ato é certamente a melhor delas.

“Spencer” é uma realização técnica impressionante em todos sentidos, o olhar proposto por Larraín se relaciona de maneira dinâmica com a protagonista, criando espaços sufocantes em alguns momentos e a enquadrando de diversas maneiras conforme seu aspecto mental vai se deteriorando, as melhores sequências acontecem de maneira natural em pequenos momentos que Diana anda pela casa com diversos objetivos diferentes e o quadro faz questão de sempre criar desconforto entre personagem e espaço, a fotografia é assinada por Claire Mathon, que também trabalhou em “Retrato de uma Jovem em Chamas” e ela mostra mais uma vez seus atributos ocupando a tela com aquilo que não pode ser visto. Contribui também para isso a trilha sonora composta pelo músico Jonny Greenwood (da banda Radiohead) que além de tocar num volume a cima do normal para um drama de época, em vários momentos mais tensos usa intervalos dissonantes para que o desconforto sentido pela personagem possa ser replicado no filme, na única cena em que Diana se liberta da família toca a única música em “Spencer” que não foi composta para a película “All I Need is a Miracle” (frase usada pela personagem para descrever sua situação), uma música pop bastante confortável e divertida, contrastando diretamente com tudo que ouvimos até então. Tudo isso e mais a direção de arte se misturam no clímax do filme quando Diana no momento crucial que finalmente visita a casa em que cresceu (no terreno ao lado de Sandringham) se visualiza em diversos momentos da sua vida, se entendo como uma criança, uma jovem e uma mulher com os mesmos impulsos de liberdade que ela parece não encontrar em si ofuscados por obrigações impostas pelos deveres reais.

“Spencer” é mais uma excelente realização de Pablo Larraín demonstrando mais uma vez ter uma voz a se destacar na sua direção é também um atestado dos talentos de Kristen Stewart que deixa de ser só protagonista e se transforma no próprio filme com uma performance dolorida e sincera (noto aqui que a semelhança física foi criada entre atriz e personagem não faz diferença uma vez que há muito mais o que analisar nesse trabalho), com momentos de puro desespero e uma facilidade em convencer o público a torcer por ela. O final do filme é o único momento que Diana consegue ser feliz o que é importante uma vez que sua separação de Charles ocorre semanas após vermos os créditos, fazendo isso “Spencer” possibilita um final feliz para personagem após passarmos a história inteira vendo como sua vida era triste e solitária na família de seu marido. Uma comparação cabível é com “A Favorita” (2019) outro drama sobre a coroa inglesa que busca contastar o glamuroso estilo de vida com o estado mental que seus personagens entram a partir dele, há rimas estéticas e narrtivas entre os dois longas, mas “Spencer” mergulha ainda mais profundamente na mente da sua protagonista e tira disso medo, tristeza, agonia e solidão apenas ao colocar Diana andando pela casa em que toda sua família está e não há nenhuma maneira melhor de construir uma persongem tão complexa como essa.

9

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