Crítica | A Mulher das Dunas

A SOCIEDADE DOS GRÃOS DE AREIA

Síntese de Hiroshi Teshigahara une culturas, mitos e lendas para fazer Cinema

A maior certeza que A Mulher das Dunas traz é que a areia é o melhor efeito visual por custo-benefício de todos. Sua falta de padrão quando vista de perto, a aparência uniforme que adota ao olhar nu, a maneira como escorre, quebra, voa, se ajeita conforme o vento passa. É um espetáculo a parte e em constante mudança, que provoca fascínio desde as crianças e seus castelos na praia, à antigos faraós e suas tumbas, à todos nós quando descobrimos o clichê de que existem mais estrelas no universo que grãos de areia na Terra.

Seu poder é tanto, que dezenas de filmes já se dedicaram à seus muitos significados. Anakin não gosta porque é pegajosa, Joel a considera superestimada, Hollywood a entende como uma ótima paisagem para mostrar os antigos egípcios como homens brancos e que falam inglês. Só em 2020, Villeneuve fez Duna e Shyamalan, Tempo.

Mas nenhum filme, que eu tenha assistido pelo menos, parece explorar tão bem o potencial da areia como este clássico quase esquecido de Hiroshi Teshigahara.


UM DESERTO DE SENTIDOS

Em suas primeiras cenas, vemos o entomologista amador Niki Junpei caminhando pelo deserto atrás de um dos MacGuffins mais sensacionais dos anos 60. Já aí o filme mergulha em alguns dos principais conceitos envolvendo a areia: Junpei não quer ser só mais um, mas alguém especial. A maneira que encontrou pra isso pode não ser tão gloriosa como a de Aquilles em sua jornada pelas praias de Tróia, mas o que ele quer é a eternidade, mesmo que essa venha na forma de ter seu nome em um livro que cataloga espécies de besouros.

Criando uma experiência sensorial desde cedo, Teshigahara alterna entre uma decupagem que encontra belos e calculados planos como aquele de Junpei em um barco, com quadros fechados e uma edição que distorce a noção espacial em meio às dunas. O que não bem nos coloca na posição do protagonista, mas torna palpável sua falta de direção - seja em sua viagem, seja na vida. Quando a câmera abre, é para mostrar sua pequenez perante o mundo (seja ele o absurdismo natural ou o absurdo social), a cena do paredão de areia desmoronando é um daqueles milagres que tornam o CGI uma alternativa pobre, e sua tentativa de fuga o torna um pequeno ponto correndo por aquele lugar que, sabemos, apenas o levará de volta a seu confinamento.

A própria trilha sonora (do renomado Tōru Takemitsu) experimenta ao misturar o clássico de sua orquestra com extensões que me parecem preceder a música eletrônica do futuro, criando sons dissonantes e que tornam todo esse jogo de andar em círculos nas dunas em uma experiência mentalmente desgastante e sensorialmente ilusória. Como se os sons se tornassem mais e mais intensos conforme o cansaço físico e mental se acentua.

Teshigahara se aproveita muito bem de toda essa estética, desde a areia que cai do teto, à cabana que balança com o vento, aos grãos que repousam sobre o corpo nu da viúva, criando também essa sensualidade que parecia regra na Nova Onda Japonesa. Assim como o terreno disforme, os estímulos à Junpei vem de várias formas e maneiras: a vontade de fugir da sociedade se encontra com um isolamento desesperador, a vontade de escapar é prejudicada pelo desejo, a humanidade é posta à prova pela liberdade - esse, o momento mais intenso do filme, um pré-Mad Max que explora a decadência do ser humano em prol do entretenimento.

CLAUSTROFOBIA METAFÓRICA

O próprio diretor admitiu em entrevistas que o problema apresentado pelo filme não é plausível. As explicações não fazem sentido (“se essa casa for soterrada, a próxima estará em perigo”) e Teshigahara nunca abre a câmera para entendermos a lógica espacial da casa em meio às paredes de areia (que por si só jamais assumiriam a forma que assumem). E embora isso tenha me incomodado durante a projeção - para um filme tão cinematográfico, seria bem possível permitir essa compreensão visual de algo, em tese, incompreensível -, a questão é que de pouco importa como, mas sim quem e o que.

Os planos fechados não apenas aguçam o desespero dele, mas conflitam sua resistência com a leniência dela. Tente juntar uma pessoa com grandes sonhos e ambições com outra contente em conhecer o mundo pela internet (ou, em 1964, pelo rádio) e tem grandes chances de os mesmos conflitos surgirem. Assim, A Mulher das Dunas assume uma tarefa tão complicada quanto contar os grãos de areia na paisagem, a de resumir toda a experiência humana em um mito que mistura a caverna de Platão com a tarefa imposta à Sísifo.

Não só o faz, mas se apresenta, inegavelmente, como Cinema. Um Cinema que explora todas as possibilidades de seu cenário, e felizmente abre mão da lógica da realidade para criar uma expressão sobre ela, filosófica e cerebral, mas reconhecendo que nem sempre nossas decisões são movidas pela razão.

Ainda mais trágico que Andy Dufresne e ao contrário de Truman, derrotado, Junpei decide que as conquistas que têm em seu cativeiro são, ao menos, conquistas. Que em seu mundo limitado, o tamanho dos feitos são por ele determinados e que é melhor viver como a estrela de um show solo do que como mais um grão de areia no deserto de individualidades que consiste nossa sociedade. Ali, pelo menos, ele é visto - mesmo que apenas por seus carcereiros e por ele próprio.

O que, no grande esquema das coisas, o torna mais próximo da Mulher das Dunas do que ele gostaria de acreditar. Ela por aceitação, ele por uma cegueira auto-imposta, ambos são destinados a passarem o resto de seus dias trabalhando por migalhas, até que as areias do tempo se esqueçam que sequer estiveram lá.

8.8

Anterior
Anterior

Crítica | Spencer

Próximo
Próximo

Crítica | The House