Crítica | The House
UMA CASA DE INTERPRETAÇÕES
Sucesso da Netflix, The House parece destinado ao YouTube
Foi preciso não mais que cinco minutos assistindo para que constatasse isso que coloquei no título desta crítica, e com um dia de reflexões acerca dos significados e significantes da obra, é possível perceber como a própria parece ciente disso.
Escrito pela dramaturga irlandesa Enda Walsh e dirigido por Emma de Swaef & Marc James Roels, Niki Lindroth von Bahr, e Paloma Baeza, a antologia consiste em três histórias diferentes, todas situadas na mesma casa: uma em sua construção no passado, outra no que percebemos ser o nosso presente, e outra em um futuro apocalíptico.
Como vários filmes lançados de 2020 pra cá, The House tem (como descrito por Michel Gutwillen em um comentário no LetterBoxD de algum filme que não lembro) esse feeling pandêmico, mesmo que seus temas não necessariamente discursem diretamente com os acontecimentos da pandemia. Confinamento, medo do exterior, estranhamento social, todos estes fenômenos comuns da humanidade que foram acentuados nos últimos dois anos. The House, portanto, me parece muito mais uma síntese da construção e demolição do mundo moderno, que encontra na Covid uma maneira de individualizar o que é um problema coletivo.
E, diferentemente de outros filmes por aí, sinto como se The House se beneficiasse dessa investigação. Não necessariamente por seus pontos de trama (estes me parecem quase amórficos), mas pelo que a obra discorre, algo que constantemente preterimos em função de entender o final ou as relações que personagem X tem com personagem Y.
O QUE É A CASA?
Em seu celebrado artigo Contra a Interpretação, Susan Sontag escreve:
A interpretação também precisa ser avaliada no âmbito de uma visão histórica da consciência humana. Em alguns contextos culturais, a interpretação é um ato que libera. E uma forma de rever, de transpor valores, de fugir do passado morto. Em outros contextos culturais, é reacionária, impertinente, covarde, asfixiante.
Nesse sentido, desvendar o local que dá título ao filme me soa como a libertação, enquanto tentar entender o que ocorre de sobrenatural dentro dele seria o que Sontag chama de asfixiante.
No primeiro curta, vemos uma família refém de convenções familiares, que têm na visita dos parentes um momento de desconforto e invasão da própria casa, onde a maneira como levam a vida é julgada. Isso logo se desenvolve na fuga que uma vida de luxo aparentemente sem custos (o sonho americano em um filme britânico?) oferece, com o filme atingindo seus melhores momentos justamente ali. Brilhantemente decupado ao estabelecer a lógica cênica que faz com que o pai esteja obcecado com a mudança e a mãe relutante (a sequência que vai da interação no bosque à ele aparecendo como um fantasma por trás da mulher, que depois o assiste comer como um animal, é montada com um perfeito jogo de movimentação e referência iconográfica), e encontrando nas irmãs pequenas nossa identificação, essa primeira meia hora poderia se sustentar como um longa.
Se quartos escuros e corredores confusos já assustam a nós, adultos, para uma criança tudo é potencializado e aumentado. O filme, ciente disso, nos convida para seu cenário principal com esse prisma na experiência sensorial, com essa distorção perceptiva que adotamos involuntariamente.
E o resto da produção me faz pensar se existe algo de realmente sobrenatural no local que não fruto dessa percepção infantil. O segundo curta é consideravelmente mais mundano e, além de ser naturalmente menos interessante, chega a ser quase literal em sua metáfora parasitária. Se já há pouca sutileza nos pedreiros trabalhando sem parar na primeira história (algo que, ainda assim, me remeteu positivamente à Synedoche, New York, Parasita, Nós e, claro, ao trabalho de Wes Anderson), essa segunda me parece um prato cheio para os vídeos de final explicado (“somos todos parasitas”, “o rato voltou pra toca”, ou algo do tipo).
Afinal, agora a casa está para venda, com seu valor histórico sendo delegado à comentários de fast-food sobre suas praticidades, o que era fantástico se torna produto como o próprio Cinema quando o assim tratamos. A paleta de cores achocolatada do primeiro dá lugar ao cinza do mundano, mas um cinza com tão pouca textura que soa como Truffaut chamaria a complicada relação entre a Inglaterra e o Cinema. Aliás, o que o filme faz de melhor é justamente resgatar a habilidade do país - e da Europa como um todo - em trabalhar com essas comédias de costumes, desde o familiar, ao social, ao hierárquico. O Horror surge mais como uma comédia de estranhezas bem britânica, que acaba vencendo na insistência.
Já a terceira parte parece elevar à enésima potência essa relação, com a névoa londrina tomando conta de tudo, invadindo a casa e afastando as pessoas, mas, eventualmente, surgindo como algo que tem de ser abraçado. Derrubando o ceticismo do segundo curta, aqui The House parece se apropriar também das figuras que temos como espirituais dos gatos (em contrapartida dos pobres ratos que consideramos pestes) que se recusam a pagar com o dinheiro asfixiante, e sim com aquilo que os que diferencia (a habilidade de caçar, a espiritualidade). Além de evocar Mãe!, O Nevoeiro e Aquarius, mas revertendo o pessimismo destes por essa esperança no desconhecido - o que acaba sendo uma bela amarração com os temas do primeiro curta, mas também confunde ainda mais a ligação narrativa entre estes.
Afinal, se as crianças encaravam a casa com medo, a solução dos adultos é não abrir mão dela? O que torna a relação da casa com seus personagens algo cada vez mais distante do concreto. Se no primeiro é a relação de propriedade que a elite exerce com aqueles que explora terminando por se apossar de suas identidades; no segundo é a transformação em produto do que é entendido como arte, na relação parasitária que compõe a sociedade moderna; no terceiro me parece ser uma questão de lar sobre o material, uma proprietária que tenta cobrar de seus inquilinos, mas recebe apenas suas naturezas em troca até que percebe que o único caminho é a frente.
Seria a casa então uma obra de arte de construção coletiva? Que se apropria de identidades para construir a sua? De megalomania, à produto, à lar, o que seria sua representação total? Por não ter encontrado resposta, The House me parece saber de seu inevitável futuro em intermináveis vídeos interpretativos, ao se preparar para eles colocando mistérios o suficiente nas paredes daquele labirinto para que qualquer tentativa resulte em fracasso - seja este ciente ou não.