Crítica | Rouge

MATERIALIZANDO O PASSADO

Melodrama potente cria fantasmas com Cinema de aparências


Tudo em Rouge é tangível, mas nada em Rouge é real.

Talvez o epítome do Cinema, do registro de um tempo, de uma cena, de uma sensação, seja justamente comentar sobre si mesmo enquanto filme, enquanto uma forma de arte que existe entre o que é real e o que se torna apenas, bem Cinema.

Em Rouge, um filme sobre uma jovem mulher fantasma que volta depois de 50 anos para se encontrar com o homem que amou em vida, e que a abandonou em sua promessa de suicídio conjunta, nada do que vemos é, ao pé da letra, fantástico. Nenhum efeito, nenhum jogo de luz, mesmo o plano-contraplano que a faz desaparecer de um espaço prévio logo é explicado por uma porta aberta ou uma cortina em movimento. Para todos os efeitos, Fleur é uma mulher real, e nada exceto o que diz (e a cena onde mostra seu coração "parado") a comprova como fantasma.

Curioso como o filme até desconstrói a própria ideia do sobrenatural na arte apenas para reforçar a força da suspensão da descrença: vemos os bastidores de uma cena de fantasia sendo filmada e acompanhamos de perto o suficiente para perceber a caracterização de um teatro de rua, mas, como o próprio filme comprova, nada nos faz hesitar, frente a um filme que não faz mistério sobre sua natureza, em reconhecer Fleur como um ser do além, para além do anacronismo de se vestir e agir como alguém dos anos 30 na abarrotada metrópole que se tornou Hong Kong nos anos 80. Mas o diretor Stanley Kwan (primeiro filme que vejo dele, importante dizer) parece incorporar sua fantasmagoria no DNA do filme, em suas entranhas invisíveis, que tornam o visível algo impossível de se recusar.

Com um leve destaque na profundidade de campo, também por conta de sua caracterização de outrora, Fleur é filmada como uma impressão, como uma farsa - e, a esse ponto, as relações com Vertigo (1958) já são mais que óbvias, mas há um apreço no Cinema de China e Hong Kong por fantasmas que retornam. No mesmo ano do lançamento de Rouge, Uma História Chinesa de Fantasma fez sucesso como remake de A Sombra Encantadora (1960), mas se esses filmes se conectam ao fantástico também em sua forma, se aproximando do Wuxia e de tradições folclóricas, o filme de Stanley Kwan se assume como uma releitura tardiamente moderna, quase como um comentário sobre si mesmo. Sua protagonista, portanto, uma personagem, sendo interpretada por uma atriz talentosa o suficiente para trazer a vida a encenação proposta por Kwan: melodramática e cheia de expressões "fabricadas", é uma fantasma e ao mesmo tempo uma atuação de uma mulher do passado no mundo do presente.

Dá até pra chamar de simplicidade o jeito que o filme é fotografado, dos planos fechados dos protagonistas, a esses mais pictóricos que sugerem uma pintura, volta e meia temos a sensação clara de que duas pessoas estão contracenando. Não me parece intenção do filme criar um universo crível, mas justamente deixar clara essa aura novelesca. Isso, até Fleur sair de cena, pois as interações do casal flertam (não era pra ser uma piada) com o que faziam Hou Hsiao Hsien e Edward Yang em seus respectivos anos 80, conversas de corpos em um espaço metamórfico e ambulante, uma espécie de abstração narrativa, de vidas que apenas acontecem e, sem o elemento sobrenatural, seguiriam acontecendo.

Daí quando os dois se perguntam se se suicidariam um pelo outro e respondem que não, fica claro que estamos vivendo uma era (ou eles estavam, 30 anos atrás) mais cinza, mais efêmera e menos romântica. Fleur é um fantasma do seu próprio passado, mas também de todo um país e de toda uma cultura.

8.8

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