Crítica | Os Pássaros

O FIM DE HITCHCOCK

Os Pássaros representa o estágio final de uma busca obsessiva


A primeira vez que vi Os Pássaros, lá pra 2018 (?), sabia pouco ou nada. Pouco para tentar justificar um significado que tornasse a arbitrariedade dos ataques o motivo da grandeza do filme, e nada pois fiz exatamente isso. Já lá o defendi, mesmo que o motivo fosse, sem saber, não qualquer coisa que os ataques pudessem significar, mas a estranha sensação que senti ao ver Tippi Hedren (como Melanie Daniels) observando Rod Taylor (como Mitch Brenner, e já aqui relembro que sou péssimo com nomes de personagens) da segurança do barco, ou ao ver o plano-contraplano de Hedren com os pássaros que se somam em cima do parquinho com um fascínio que Hitchcock sabia e regozijava em provocar.

David Boardwell, um dos teóricos mais mais inevitáveis ainda vivo, acredita que, grosso modo, o espectador registra o estilo, o sente e gosta ou desgosta de um filme por conta desse estilo mesmo que, inevitavelmente, enxergue apenas a história. Como um formalista - e, hoje, não acredito haver outro jeito -, compartilho da mesma ideia, da dissociação do Cinema da Literatura, da assimilação do Cinema como uma arte de imagens. Logo, psicanálise de lado, julgo possível um filme ficar “adormecido", assim como uma memória (e enquanto escrevo isso me lembro que acabei de assistir Monster, 2004) que pode ser acionada com o que a internet popularizou como gatilhos - e, aí, entra a bagagem, a história, a capacidade de reconhecer uma reverência. Mas o rever é um exercício diferente, um exercício de repassar aquela memória sobre o filtro da atualidade, de novos olhos (assim como as fases do Sharingan, e aqui paro de mencionar animes - estou numa fase). Que este rever possa, porém, reavivar e, portanto, ressignificar essa memória, é um dos milagres da vida moderna.

Assim como nas primeiras vezes que vi Vertigo (1958) e Janela Indiscreta (1954), havia assistido a um filme que, hoje, acho que posso enxergar.

Ao meu lado, na sessão, estavam meus dois irmãos (11 e 13), vendo seu terceiro Hitchcock e primeiro nos cinemas (meu primeiro, também), no mais antigo cinema de Porto Alegre - a Cinemateca Capitólio foi fundada em 1928. Antes da sessão, passeamos pelo pequeno museu, que contém fotos, negativos, rolos de filme e máquinas de edição. As duas horas parecem ter, vez que outra, os cansado, mas tenho certeza que em meio à novidade, ao fato de estarem ao lado de colegas norte-americanos do meu trabalho que só falam inglês, e ao fato de que no último canto do cinema lotado havia uma criatura roncando mais alto que uma Ferrari, algo vai ficar lá. Seja a sensação de que cada olhar parece adicionar mais pássaros, ou de que o filme não oferece qualquer explicação (e suas reações com o fim abrupto foram impagáveis). Com meu colega, brincava ao final da sessão: se fosse hoje, teríamos Os Pássaros: A Vingança de Mitch já anunciado e um spinoff focando em, sei lá, lagostas.

Mas o que vejo hoje, e que ressoou comigo, é como este talvez seja o fim de Hitchcock, a resolução de sua queda em direção ao desespero que, naquele ponto, já durava 36 anos. Qualquer explicação, qualquer coda, qualquer coisa, seria trair o próprio filme. A seguir, sobre isso.

E, como sempre, aviso de spoilers.


Uma breve nota sobre o Cinema Hitchcokiano

Há uma semelhança na maneira como a crítica e a interpretação funcionam. Ambas tentam elaborar algo sobre uma determinada obra, mas onde a crítica se aproxima de ter qualquer valor e a interpretação se fragiliza como uma mera suposição (por mais “embasada” que essa possa ser) é que o crítico parte (ou deve partir) da matéria que constitui a arte escolhida, visando encontrar ideias, ao passo que o intérprete, na maioria das vezes, se abraça a signos com o intuito de descobrir uma verdade absoluta. O crítico, com seu contrato interno de ofício declarado, se municia (ou deve se municiar) de história, teoria, conhecimento técnico, para poder elaborar não a ideia final, mas uma ideia qualquer. O intérprete acredita, na maioria das vezes e cada vez mais onipresente na cultura pop ocidental, que ao ligar os pontos encontra um significado que, novamente sob valores hoje estimados, significaria uma justificação da qualidade de tal obra. O que não percebe é que, ao julgar estar fazendo algo que expande a visão sobre música, livro ou filme, está na verdade limitando o alcance da experiência subjetiva: quando a arte vem ao mundo, ao mundo pertence, e não existirão nunca duas experiências iguais.

Que tédio seria a arte se houvessem respostas universais, mas não podemos também crer que há qualquer chance de despertarmos das amarras culturais que mergulham nosso consciente individual no coletivo muito antes de sequer percebermos sua existência - julgo, talvez de maneira irresponsável, que a grande maioria das pessoas nunca percebe. Como já disse Susan Sontag, em seu famoso Contra A Interpretação: Nenhum de nós poderá jamais recuperar a inocência anterior a toda teoria, quando a arte não precisava de justificativa, quando ninguém perguntava o que uma obra de arte dizia porque sabia (ou pensava que sabia) o que ela realizava.

Logo, é uma tarefa árdua encontrar, em meio à quantidade opressiva de interpretações e explicações, ideias sobre o Cinema de Alfred Hitchcock, talvez o cineasta que mais representa uma ponte entre a superfície e a profundeza da espectatorialidade cinematográfica. Na superfície, seus filmes são marcados por jogos de câmera, plot twists, macguffins e patologias (engraçado que M. Night Shyamalan, que é lembrado pelo mesmo, seja tão rejeitado pela crítica mainstream), mas não são, e nunca foram, veículos literários. Por mais que tenha adaptado a maior parte de sua filmografia de livros, Hitchcock se comunicava com imagens. Seu Cinema, antes, mas também muito depois de ser sobre qualquer trama complicada, era sobre assombrações, sobre identidade, sobre a escopofilia e as propriedades que tornavam essa relação algo mais complexo do que um simples voyeur.

Este texto não tenta ser uma análise sobre seu “estilo”, nem mesmo um resumo, mas mediante a experiência que tive re-assistindo a Os Pássaros, me pareceu necessário mais que um prefácio, mas também uma introdução. Assim como em outros textos, onde me entrego a uma pesquisa mais a fundo que uma “crítica normal”, não parto necessariamente do filme e seu começo e fim, mas procuro estabelecer uma base para que qualquer ideia proposta possa surgir ciente de onde surge. Não considero, a essa altura, minha escrita no Outra Hora como uma tentativa de melhor me posicionar na cauda longa, ou de sequer servir de guia de consumo, mas sim propor um catálogo de meus estudos: contra a interpretação, não considero que o “trabalho” do crítico seja confrontar os filmes que surgem servido da cartilha do bom filme, mas sempre olhar além (não necessariamente, pra frente). O que significa, também, que para o Marco de outrora, a experiência não será a mesma. Afinal, como vimos e como acredito veementemente, um filme nunca termina de se modificar.


O filme que testemunhamos

Chega a ser indissociável a teoria artística de Hitchcock com o que se escrevia na Cahiers du Cinema nos anos 50. Dos maiores proponentes do britânico como um dos principais autores do Cinema clássico e moderno, nomes como Rivette, Rohmer e Godard dedicaram textos, e mais a frente filmes, a reverenciar aquele da silhueta. A influência desses estudos é sentida até hoje, e foi lendo e relendo alguns destes pensamentos que uma ideia mor sobre Os Pássaros me veio e pareceu se concretizar conforme a conciliava com o trabalho de outro teórico fundamental - este, contemporâneo.

Luiz Carlos de Oliveira Jr. (o qual cito em quase todo texto), teorizou sobre a possibilidade de Vertigo ser um filme matriz, um filme no qual o passado culminou e o futuro de lá surgiu, como se a espiral que vemos em sua famosa capa puxasse todo o Cinema para seu centro. Mas foi lendo outro artigo seu que a ideia tomou forma: em A Mise En Scène e o Cinema de Fluxo, Oliveira Jr. resume o pensamento de Jacques Aumont: há, portanto, duas escolas do plano olhar: uma que queria, antes de mais nada deixar o olhar flutuar e errar sem se manifestar por si mesmo, que Aumont chamará de escola Rossellini, e outra que queria, ao contrário, que a cada instante o olhar marcasse sua presença, sua existência e seu poder, a escola Hitchcock.

De cara, alinhar Hitchcock e Rossellini parece algo impossível: enquanto um captura o mundo e revela sua magia, outro o observa e manipula para revelar suas trevas. Enquanto um é o rosto central do Neorrealismo, de mostrar o mundo como ele é, o outro é a face da modernidade e suas distorções, o ancestral do maneirismo e seu esgotamento, a maior defesa do formalismo e da estilização. Citando Rivette, Rossellini não demonstra, ele mostra. Citando Godard, Hitchcock não olha, ele mira.

Mas há em Os Pássaros uma espécie de continuação lógica… ou melhor, a única possível para a revolução marcada por Vertigo e a destruição deixada por Psicose (1960). Enquanto um é a força centrífuga de tudo (o olhar, a manipulação da imagem, a tragédia dando lugar a farsa, o clássico dando lugar ao moderno), e o outro é a violação do que sobrou (a mocinha morrendo na metade, os maneirismos histriônicos que premeditam o slasher e o giallo, a reviravolta pelo choque e a transformação da repressão edipiana em cadáver), não resta nada para Os Pássaros se não a queda final. Não da torre ou das escadas, mas da mente e da mise-en-scène, essa, a representação Hitchcockiana de si mesmo, muito mais do que qualquer de seus cameos. E essa continuação, essa queda, é o que lança o filme na direção de Rossellini, na direção das aparências do mundo físico como via de acesso ao que se agita no interior delas. Em outras palavras, a impressão é que Hitchcock tenta filmar o estoicismo da natureza, e não mais o platonismo da natureza humana.

Curioso que, apesar de o citar, vou de encontro ao próprio texto, onde Oliveira Jr. chega a comparar Stromboli (1951) e Os Pássaros como exemplos da diferença entre ambas as escolas, mas alguns planos do segundo parecem quase brincar com algum tipo de aproximação dos dois filmes.

Acredito, porém, que mesmo que tenha olhado para essas aparências, que tenha tentado capturar o mundo com um olhar imediato e imprevisível ala Rossellini, que tenha atingido a exaustão do estilo, para Hitchcock é impossível extinguir a necessidade de corromper a realidade capturada.

Para Rossellini, o quadro já está nas coisas, é determinado pelo corpo do ator, pela configuração natural do espaço, pela predisposição do mundo no momento em que ele o filma…. Em Hitchcock, por sua vez, o quadro é uma composição previamente pensada… Os planos são gerados por um olhar inchado pela atividade cerebral, um olhar que marca o domínio e mesmo a posse do autor sobre o universo diegético.
— OLIVEIRA JR

Pensemos no que são os pássaros. A maioria dos que vemos no filme são criaturas reais, capturadas e treinadas. A representação pura da natureza, a qual Hitchcock preferiu aos animatrônicos. E agora pensemos em outra característica mais comum a Hitchcock: o idílico das paisagens, os parques, os campos, as lojas de flores, a baía. Em Os Pássaros, ambas as coisas convergem, ou melhor, entram em dialética: a natureza se corrompe ao olhar do autor e a vemos cair sobre a humanidade. O que antes, em outros filmes, remetia a uma espécie de éden, um paraíso onde suas almas perdidas podiam por breves momentos esquecer o mundo lá fora (e aqui lembremos de Rebecca, Spellbound, Vertigo, da profissão do protagonista de Janela Indiscreta), aqui se torna o palco da mancha Hitchcockiana, três anos antes de Antonioni também desse éden se apropriar com seu Blow Up.

No famoso plano aéreo, onde vemos pela ponto de vista das criaturas, vemos Hitchcock como natureza - uma natureza, porém, manipulada e distorcida. Em meio aos muitos pontos de vista, da curiosidade, da testemunha, da desconfiança, do desespero, aquele que reina não é mais o voyeur, pássaros não olham com desejo, o que me remete ao que diz Herzog em seu brilhante Homem Urso (2005), ao falar sobre sua experiência investigando a história trágica de Timothy Treadwell: O que me assombra é que, em todas as caras de todos os ursos filmados por Treadwell, eu não descobri nenhuma simpatia, compreensão ou piedade. Vi apenas a impressionante indiferença da Natureza. Para mim, não existe um ‘mundo secreto dos ursos’, e este olhar vazio revela apenas um interesse entediado por comida.

Contudo, é necessário, castigo justo, passar pela angústia de espera, a ideia fixa do que deve vir depois. Muito tempo, de repente, dado a cada gesto; não se sabe o que vai acontecer, quando e como; pressente-se o acontecimento mas sem o ver progredir; tudo é acidente, imediatamente inevitável; o pressentimento do futuro na trama impassível do que dura. Respondam-me se se trata de filmes de voyeur ou de filmes de vidente.
— JACQUES RIVETTE, Carta à Rossellini

Com isso me parece que a interpretação da motivação, ou do significado, do ataque dos pássaros é ir contra a própria essência do filme. Se qualquer ideia deve ser elaborada sobre essa motivação, esta deve residir não no significado do que acontece, mas do como acontece. Não por que os pássaros estão atacando?, e sim por que Hitchcock assim os filma?. Deve-se, portanto, buscar uma leitura da forma, dos planos, dos cortes, de como a escola Hitchcockiana invade a de Rossellini, e de como o mundo que conhecemos sofreu uma profunda transformação interna, o que o aproxima também de um Jacques Tourneur, e como construía com a sutileza do gesto o fantástico em seu Cinema - e aí é impossível não notar como um dos propostos simbolismos de Tippi Hedren no filme é de que ela é a agitadora das criaturas, tal qual a protagonista de Sangue de Pantera (1942). O mundo de Os Pássaros é, assim como o de todos os filmes de Hitchcock, uma representação do mundo real, mas, talvez como único de seus filmes, onde algo de sobrenatural parece reger regras que, logo percebemos, não seguem as nossas.

E é na falta de explicação, no imperialismo da imagem e não do texto, que Hitchcock caminha, como sugeriu Sganzerla, em direção ao abstrato:

 Em vez de reproduzi-lo diretamente (através de suas impressões visuais), os cineastas apreendem os objetos segundo uma preocupação intelectual a ponto de submetê-los a uma lógica rigorosa, admitindo-o como expressão de alguma coisa... ou ideia (o misticismo cartesiano de Bresson, o “suspense” em Hitchcock, o discurso marxista em Eisenstein, reflexão sobre a fatalidade em Lang). Tais cineastas dirigem-se à abstração.

O filme que vemos

Embora, na superfície, Os Pássaros se assemelhe a outros filmes de Hitchcock em seu início, mesmo na estrutura narrativa já há algo que me parece jogá-lo na direção que comento no tópico a seguir.

Para além do título e de ser baseado em um livro, Os Pássaros não tem necessariamente uma premissa a ser seguida. Não há suspeita (talvez o tema literário mais comum em Hitchcock), seja ela na forma de acontecimentos ou de observações. Para tudo que sabemos, poderíamos excluir o texto envolvendo os protagonistas, e de nada mudaria que o ataque dos pássaros desolou a pequena cidade de Bodega Bay. Mas, aí, estaríamos vendo Spielberg ou, em casos mais extremos, qualquer filme de monstro e/ou desastre que se seguiu de seu Tubarão (1975) - por si, uma releitura mais americana e menos sofisticada.

O que leva os primeiros trinta minutos do longa de Hitchcock é justamente o seu jogo de cena, sua atenção ao gesto e a habilidade que tem em decupar suas cenas para que os cenários sejam parte integral da dramaturgia. Iniciando dentro de uma loja de pássaros, já ali é como se o filme estabelecesse esses núcleos internos como cápsulas, microcosmos a serem explorados, tanto com o movimento da encenação, como com a demarcação dos cortes e contraplanos. Se a loja surge como esse ambiente simbólico (a sexualidade reprimida é talvez o grande motor de todo filme de Hitchcock), onde duas pessoas se encontram e se interessam uma pela outra, outros ambientes tem seus próprios temas e tons.

Mais tarde, temos a casa dos Brenner, que serve como palco para um conto edipiano, uma tensão familiar que vai de Buñuel a Bergman (o plano da mãe na cama é praticamente um prelúdio pra o que o Sueco fez nos anos 70), e um jogo de olhares e disposição de cena que De Palma tomaria como seu (o uso da profundidade de campo e do foco múltiplo, tanto imagético como sonoro, é a cereja do bolo). Nas cenas envolvendo a professora, uma tensão sexual que chega a conversar com a poligamia corrosiva de um Chabrol, ou aqueles momentos pré assassinatos de um Argento; no bar no meio da cidade, um encontro dos habitantes joga teorias e teorias na mesa, e vemos o escalar do caos coletivo que serve tanto como alegoria de si própria, como reminiscente e pioneira de filmes de desastre - os quais Shyamalan parece ter circulado como mote favorito.

Essa lógica de isolamento me remete até mesmo a David Lynch e Twin Peaks (1991), em como a cidade não é necessariamente estabelecida com panorâmicas e planos abertos (por mais que Hitchcock faça isso com o mesmo encanto de Vertigo), mas com proximidade e um senso de ambientação caseira - algo que Arthur Tuoto chama de espaços sagrados a serem violados pelo mal. Acho brilhante como o ataque a escola remete tanto a epidemia em Stars In My Crown (1950), de Tourneur, como ao “mal na floresta”, de Twin Peaks, em como viola esses espaços sagrados.

A diferença, e o que ressignifica em termos de escala a potência do filme, é que Hitchcock foi antecessor ou contemporâneo de todos esses que citei: seu Cinema por mais que seja uma amalgama de influências, parece mesmo esse ponto de re-origem, um prisma para o que quer que tenha vindo depois, nas mais distantes vertentes. Mas, mais ainda, como esses núcleos, por mais que de certa forma “isolados”, jamais deixam de compreender o todo, algo que vai desde o jogo de olhares dos habitantes enquanto assistem o ataque para lá da janela, ao design de som que justapõe conversas e sons de maneira abarrotada, mas ao mesmo tempo clara, ao olhar horrorizado de uma mãe no bar que faz o filme conversar também com a dimensão sobrenatural - um paralelo que, como disse, remete a Jacques Tourneur.

A sensação que fica, então, não é necessariamente de uma relação recíproca - se ao cortarmos o início Os Pássaros se torna outro filme, talvez inferior, ao tirarmos os pássaros em si, ainda estaríamos diante de uma obra apenas possível para um diretor como Hitchcock. Um filme aberto, sem lugar determinado para onde ir, que se desenvolve na relação patológica de seus personagens e parece funcionar em conexão com seus diferentes núcleos não importando como estes são assimilados. Seria um romance, seria um suspense, seria uma comédia romântica, o fato é que o filme existe como todos esses. Uma arte, como Rivette mencionava ao falar de Kenji Mizoguchi, da modulação.


O filme que (não) tocamos

Hitchcock, porém, rejeita a modulação ao centralizar a segunda metade do filme em, bem, os pássaros.

Se só a dialogação (ou melhor, o rapto) do olhar imediato e imprevisível de Rossellini, com o manipulador e distorcido de Hitchcock já alçaria Os Pássaros a qualquer panteão, acredito que o filme converse ainda com essa outra vertente cujo impacto da maré é menos facilmente reconhecível, mas existe até hoje. Em boa parte de sua filmografia, mas mais precisamente em Intendente Sansho (1954), Mizoguchi atinge o ápice do que alguns chamam de Cinema do todo. Premeditando o 3D, Sansho (lançado no mesmo ano que Disque Para Matar e Janela Indiscreta, o primeiro sendo inclusive exibido como um filme 3D) existe sob uma lógica tridimensional, que escancara a intangibilidade de um mundo tangível em um drama sobre separação, distância e ausência. E embora Os Pássaros passe longe da potência dramática daquele filme, é indiscutível como por vezes a cenografia de Hitchcock parece sugerir uma conversa entre a janela e o mundo.

Em outras palavras, o que eles estavam empenhados em levar ao limite não era o cinema enquanto dispositivo - fosse ele um dispositivo sensível à aleatoriedade e à memória lábil das coisas, fosse um instrumento rigoroso de seleção e captação de aparências significantes -, mas antes o conjunto de técnicas e elãs que lhes permitia encarnar um sentimento do mundo através das figuras de corpos de atores fotografados em seus movimentos e em seu meio, algo a que costumamos chamar mise en scène. - OLIVEIRA JR.

Christian Petzold, em Undine (2020), estabelece essa conversa, mas só Hitchcock para fazer tudo isso em um plano-contraplano, onde plano é rosto (o olhar, a mente), e contraplano é paisagem (a visão, a patologia). Onde plano destaca e potencializa corpo, natureza e objeto, e contraplano revela uma pintura sem relevo, onde a mancha é destacada apenas pelo nosso conhecimento prévio. Como teoriza André Bazin: enquanto o quadro chama suas atenções para o meio (uma força centrípeta), a tela leva em conta o que está a seu redor (uma força centrífuga). Quando Hedren observa Rod Taylor, seu olhar (e o nosso) pode até passear pela bela paisagem idílica, mas se fixa no corpo que por ela se move. Quando nós observamos Hedren enquanto observa Taylor, nosso olhar está nela, mas também compreende o todo (o lago, o barco, o que ela vê).

No Hitchcockianismo puro, não há nada como a sensibilidade de tempo do homem que melhor entende o poder do olhar e da imagem (o plano-contraplano da explosão é um atestado para qualquer ateu), mas adentro do Mizoguchianismo, vemos como ele também se encarrega em compreender a totalidade do mundo disponível pela tela do Cinema tanto no que tange a narrativa (os núcleos que se isolam mas não excluem, ou se excluem do, todo) como no que tange a forma. Algo que as cenas de ataque dos pássaros coloca em evidência quase maneirista: fazendo com que pareçam invadir e extrapolar a tela, Hitchcock destaca corpos e lugares do mundo, mas nunca os isola dele. Remetendo novamente ao que Oliveira Jr. comenta sobre o estilo Rossilliniano, e que mais do que se aplica a essa conversa entre os três diretores: o plano, então, não é uma distribuição dos corpos no espaço emoldurada por uma composição pictural, mas uma captura de forças. A diferença, em Os Pássaros, é que Hitchcock é quem manipula essas forças, quem manipula a matéria sensorial do mundo, buscando não a modulação, mas o colapso.

Este, tanto no material (os objetos de cena destruídos, os cenários caóticos, as explosões e corpos pela rua, os olhos arrancados) como no psicológico (se antes suas loiras morreram das mais distintas formas, dessa vez o único fim possível é a destruição da mente, da identidade, da sanidade).

O que me leva a minha sensação re-assistindo ao filme, e saindo profundamente impactado por seu manifesto como arte. De um ponto de vista “narrativo", como estória, de nada ele me comove. Mas em termos de forma, na continuação de sua busca cinematográfica que se destruiu em Vertigo e se violou em Psicose, a sensação de assistir Os Pássaros é de um caos que se assemelha a Robert Bresson (porém, claro, divertido). Uma exaustão dos códigos que leva à sua totalidade, esta, terminada com uma certa calmaria, não mais distinguível da inevitável morte. Seja ela ainda dentro do tempo do filme, ou após seu sucinto, e indiferente, final.

E existem filmes que não possuem nada disto e retornam ao tempo como os rios ao mar, e que nos mostram no final as imagens mais banais: rios que correm, multidões, exércitos, sombras que passam, panos que caem ao infinito, uma rapariga que dança até o fim dos tempos… E existem filmes que trabalham o tempo numa imobilidade dolorosamente contínua, que terminam, sem cair em erro, no momento de cortar a respiração. - JACQUES RIVETTE, Carta à Rossellini
Anterior
Anterior

Crítica | Rouge

Próximo
Próximo

Crítica | A Noite das Bruxas