Crítica | Cidade dos Sonhos (2001)

A LUZ QUE O OLHO FECHADO REFLETE

Obra prima de David Lynch é também sua passagem para a imortalidade


Em uma sequência devidamente lynchiana de tweets, o falecido diretor havia dito que tentaria descobrir, ao longo de um final de semana, se era conectado com a lua. Sua resolução foi positiva.

Ao ver estes tweets, impressos e colados na parede do apartamento de um amigo aqui em Porto Alegre (no qual irei rodar um curta no mês que vem) imediatamente me veio à mente a última aparição do Major Briggs, pouco depois de explicar a Dale Cooper sobre o White e Black Lodge: acampando na floresta, à noite, os dois dividem histórias ao redor de uma fogueira. No fatídico último episódio da segunda temporada, quando é Cooper quem desaparece, é a vez do Xerife Truman e de Andy dividirem um tronco, esperando zelosamente pelo amigo.

Não lembro de ver muitas vezes a lua nos filmes de Lynch, mas há algo de místico na maneira como seus personagens habitam a noite - e, portanto, são banhados por ela. E faz sentido que Lynch, talvez um dos cineastas mais idiossincráticos de sua geração, filme o céu pelo que há no chão. Seu surrealismo, se existe, vem menos da distorção das cordas da realidade, e mais em uma estranheza revelada na representação mundana (com um filtro cinematográfico) desta. As memórias dos filmes de Lynch são quase sempre mais embaraçadas que suas imagens, uma traição que me remete mais ao não-cachimbo de Magritte do que suas outras pinturas mais famosas.

Faz sentido, portanto, que, enquanto outros diretores tentavam abordar a virada do milênio por meio da excitação / ansiedade, Lynch tenha lançado The Straight Story (1999), um filme calcado na altura do assento de um cortador de grama, inspirado em uma história real (e portanto, surreal). Seu segundo melhor filme é, sem precisar sair do chão, uma viagem interplanetária, que cobre uma distância maior que qualquer nave estelar para unir dois irmãos afastados. No plano final, um deles olha para o céu, e subimos com ele. Para as estrelas.

É possível dizer que Lynch flutuou entre filmes assim, onde filma o mundo em busca de suas estranhezas (Eraserhead, Veludo Azul, Twin Peaks) e filmes onde esta estranheza se impregna no dispositivo (Estrada Perdida, Inland Empire), seja ele cênico, tecnológico ou ambos. Ao que seu filme seguinte a The Straight Story, sua mais potente e mundana aventura, só poderia ser uma reorganização completa dos signos de sua carreira até ali. Diretor de poucos filmes, Lynch surfou e ajudou a empurrar a onda da videoarte, da instalação artística e da realidade virtual, enquanto se apossava menos de gêneros do que de seus fragmentos. Cidade dos Sonhos é a extensão natural disso, se apropriando de algo que, curiosamente, ainda não havia sido pauta para o diretor. Pois o mundo que Lynch filma não é mais o nosso, mas sua representação por meio do cinema e suas estradas, que vem de lugar nenhum e levam à perdição.


NA ESTRADA PERDIDA DE HOLLYWOOD DESORIENTAÇÃO PELO CINEMA

Coisa de dois anos atrás iniciei uma busca pelos filmes que teriam originado a obra mais genealógica de David Lynch. Uma busca que me levou a diferentes e distantes lugares, mas que acabou se perdendo no meio do caminho.

Podemos começar com Detour (1945), filme de Edgar G. Ulmer sobre um pianista que decide pegar carona de Nevada a Califórnia, em busca de sua ex que foi tentar a vida em Hollywood. A carona o leva a caminhos inesperados, que parecem levá-lo para cada vez mais longe de seu destino ao passo que o prendem em uma espécie de limbo: profundamente marcado por seu modo de produção, Detour é um filme B que fede à uma tentativa de adentrar o panteão da cidade dos sonhos, reservado apenas àqueles cujas chaves lhes são presenteadas.

Dez anos depois, outro filme, feito às margens de Hollywood por uma produtora independente, e filmado nas ruas de Los Angeles, parece pegar a mesma carona. Começando em uma estrada, A Morte Num Beijo (1955) mostra o investigador Mike Hammer resgatando uma jovem, pedindo ajuda no meio do nada. Quando entra no carro, ela pede apenas uma coisa: lembre-se de mim (não seria a namorada do pianista?). Especialmente influente para os críticos e diretores da Nouvelle Vague, o filme soma pontas soltas a reviravoltas constantes, com um tom que acompanha a paranoia da Guerra Fria e o ápice do imaginário cinematográfico em iminente eclosão dos anos 50. Quase como um anúncio do cinema que terminaria ao final da década, para que outro pudesse começar.

O mesmo pode ser dito de Cidade dos Sonhos, filme lançado no início do século, mas no limiar de um cinema americano que já não seria mais o mesmo. Semelhante aos dois filmes mencionados acima, começamos na estrada - esta, porém, com uma vista privilegiada para as luzes ludibriantes de Los Angeles. E até podemos fazer outros pit stops, e parar em Spellbound (1945), The Spiral Staircase (1946), Whirlpool (1950), A Lonely Place (1950), Sunset Boulevard (1950, é claro). Ou em filmes posteriores aos anos 50, e falarmos de Psicose (1960), Persona (1966), Two Lane Blacktop (1971), Profissão: Repórter (1975), Blow Out (1981), Showgirls (1995). Se Vertigo (1958) recebeu um tratamento de matriz por Luiz Carlos de Oliveira Jr., que tange parte substancial de todo o cinema hollywoodiano e afora, podemos chamar a matriz do filme de Lynch de uma devida estrada perdida, dos filmes que vieram de, e foram para, Hollywood e que, justamente por se perderem no mesmo caminho que me perdi, puderam encontrar seu devido lugar neste império imaginário de sonhos e luzes.


SE GUIANDO POR LETREIROS E OUTDOORS DESORIENTAÇÃO NO ESPAÇO TEMPO

Neste último ano tenho apontado para uma outra série que se iniciou no fim dos anos 90 e foi se dissipando ao longo dos anos 2000. Uma série, muito provavelmente inconsciente de seus diretores, que aborda a crise imagética de um mundo prestes a entrar na pós-modernidade, que encontra um espaço especial na matriz de Vertigo, justamente por buscarem uma expansão interna de suas possibilidades.

Série protagonizada por (mas não restrita a) quatro filmes: A Síndrome de Stendhal (1996), De Olhos Bem Fechados (1999), Cidade dos Sonhos e Femme Fatale (2002). Me chama atenção em especial o caminho percorrido por Kubrick de O Iluminado (1980) até seu filme onde Tom Cruise tem uma crise de identidade no meio da noite Nova Iorquina. Se o hotel assombrado famosamente distorce seus caminhos e corredores em uma espécie de confusão interna que é mostrada pela obsessão calculista de seu realizador (as imagens simétricas são, na verdade, pedaços de um quebra cabeça paradoxal), a jornada de Cruise me parece ser a emulsificação deste processo desnorteante: enquanto vemos por onde ele anda, nos perdemos cada vez mais no purgatório do cinema.

Calha a Lynch, porém, rejeitar as máscaras, pois a narrativa de Cidade dos Sonhos parece feita para esconder, mas sua encenação não poderia ser mais às claras. Quando Betty chega na casa da tia, vemos um contraplano panorâmico que não esconde nada. Se os dois amigos conversam na lanchonete sobre o monstro do beco, mais tarde entramos no beco e o descobrimos como apenas um morador de rua. Se ambas as mulheres são atrizes, logo o dispositivo é evidenciado: vemos Betty praticando suas falas e vemos a parte burocrática (e nada artística) de se fazer um filme: enquanto Betty é conduzida pelas entranhas do estúdio (por uma montagem que torna cenários desconexos em um caminho imediatamente aceito por quem assiste), Camilla é dirigida por um diretor narcisista que entra na cena, e manda desligar as luzes do estúdio para que possam fazer sexo.

Em um filme mergulhado em luzes, tudo é deixado as claras. As pistas de Lynch estão espalhadas, mas de pouco importam. Os caminhos perdidos são, assim como em todos os filmes que comentei até aqui, maneiras de assimilar e tomar posse dos meios de produção do filme: inicialmente visualizado como uma série para TV, Lynch teve que adaptar o episódio piloto para que se tornasse um longa. Eis as pontas soltas, não da narrativa, mas das cenas e dos núcleos. Um filme que descamba em si mesmo, como uma pintura que descamba nas tintas e nas pinceladas de seu artista, as deixa em evidência, mas seu papel no todo importa menos do que o todo em si. Agora, talvez, possamos estar falando de Max Ernst, mas por qualquer motivo é um filme que me remete mais ao cubismo distorcedor de formas de Picasso.

O caminho pode parecer bifurcado, mas é simbiótico: enquanto a narrativa se mostra clara quando juntamos os pontos, cada cena parece um labirinto em si própria, independente da seguinte. É possível dizer, portanto, que Estrada Perdida (1995) foi o seu Iluminado, um filme de confusão interna, diegética, mostrado com a frontalidade estética de um diretor que pouco esconde em cena. Ao que o estilo de Lynch incide para que Cidade dos Sonhos se aproxime a De Olhos Bem Fechados sem a necessidade das duas décadas que separaram os filmes de Kubrick: enquanto um é detalhista e matemático, Lynch tem uma encenação muito mais simples, errônea, fugidia.

Nisso, e apenas nisso, ele me lembra Luis Buñuel, o maior surrealista do cinema, e mais em específico seu magnífico Aquele Obscuro Objeto do Desejo (1977), filme que termina, assim como A Morte Num Beijo, em uma explosão, e que tem uma iteração reversa a de Vertigo. Se no filme de Hitchcock, e em muitos de seus filhos (dos quais este de Lynch é um), uma mesma atriz interpreta duas personagens, no de Buñuel uma mesma personagem é interpretada por duas atrizes. Ao que Lynch multiplica em Cidade dos Sonhos, duas atrizes interpretam duas pessoas que na verdade são a mesma pessoa, dependendo do ponto de vista. A confusão está na encenação, que então tinge a narrativa de maneira simples e direta: o que é sonho logo se torna pesadelo, e o que parece realidade logo se revela sonho.

Acabando em si mesmo, porque é apenas o que poderia ser, Cidade dos Sonhos é a obra máxima de Lynch porque faz o que tantos tentaram e sonharam. Provar uma conexão com a lua, que o permita adentrar o império dos sonhos.

Que descanse em paz, em sua sala especial com as cortinas vermelhas.

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Crítica | Mickey 17