Crítica | Mickey 17
falsas promessas
Em filme que critica Donald Trump, Bong Joon-ho se torna ele próprio um parasita
Em uma cena desse novo filme de Bong Joon-ho, no que podemos chamar de prólogo, Toni Collette caminha em direção a câmera e pede ao protagonista, interpretado por Robert Pattinson, para tocá-la para ver se é real ou fantasma. A disposição das cores, seu movimento em cena, a temática da duplicação entregam: Bong tentou, de alguma maneira, fazer seu Vertigo (1958). Chegou tão perto como duas crianças montando um foguete no fundo de casa chegaram do céu. Ou melhor, não. Porque com as crianças há algo de sonho, de artesanato. Bong só comprou um foguete na shopee mesmo.
Com filmes assim é ainda mais difícil começar por algum lugar, e seria um sacrilégio gastar mais palavras envolvendo a obra prima de Hitchcock, então vou começar pelo que tem sido um dos meus maiores protestos quanto à produção hollywoodiana contemporânea.
Após Parasita (2019) - filme sugestivo sobre a relação parasitária do sistema capitalista que tenta elencar seus temas por meio de uma concatenação de arquitetura, digitalização e cinema, mas também por meio de duas famílias-espelho, e nas relações interpessoais entre todos - Bong não teria problema algum em financiar o projeto que fosse. Vencedor do Oscar e propulsor de seu país a um patamar inédito no cenário audiovisual mundial (sua mãe, provavelmente, já assistiu a um dorama), Bong tinha Hollywood a seus pés. Mas eis que, após Parasita - de novo, filme sugestivo sobre a relação parasitária do sistema capitalista que tenta elencar seus temas por meio de uma concatenação de arquitetura, digitalização e cinema, mas também por meio de duas famílias-espelho, e nas relações interpessoais entre todos -, Bong pega mais de cem milhões de dólares… e faz isto.
O isto: uma propaganda panfletária, que usa um gênero moribundo desde os anos 2000, como veículo para uma crítica mais rasa impossível de Trump e seus seguidores, que ou descarta completamente os temas cinematográficos que interessavam Bong em Parasita (lê-se: a arquitetura, a encenação, a relação das pessoas com o espaço que habitam), ou que comprova sua total inabilidade de operar a máquina hollywoodiana.
Comecemos pela primeira cena, de um Robert Pattinson caído no fundo de uma caverna de gelo quando outro personagem fala com ele por uma fenda no chão acima. É um contraplano de faculdade, em um cenário digitalizado e com pouco se qualquer cuidado no enquadramento - o que é a norma mesmo para cineastas “renomados” como Nolan, Scorsese, Coogler, hoje em dia. Pois Pattison, embora se remexa e murmure, faz apenas isso, com uma expressão (nível escola de interpretação) que regurgita o que está sentindo: frio, dor de barriga, dor. Não há qualquer espaço para nuance nem nestes, nem em nenhum plano de todo o filme, no qual por boa parte seus atores gritam, esbravejam, reagem com caras e bocas. Não há dúvida: Hollywood está cada vez mais perto de uma novela das 7.
Quanto às suas unidades, não há o que se salve: quando os dois Pattinson conversam um com o outro, o plongée é, novamente, acadêmico: o mais intenso visto de baixo, o tímido visto de cima. O cenário ao fundo do quadro? Não importa, é só um borrão cinza. Isole os quadros, e você tem um não-plano, um vídeo de tiktok onde um ator interpreta algumas falas em um fundo neutro e, supostamente, devemos nos impressionar por como ele atua consigo mesmo. Virou comum para o cinema hollywoodiano, porém, fazer atores atuarem para o além, pois precisa ser muito ingênuo para achar que, com a infinidade de close-ups em cada filme, seus companheiros de cena estão ali e não sentados confortavelmente enquanto são paparicados no backstage. Logo, nada de impressionante há em uma cena onde um ator conversa consigo mesmo interpretando dois personagens, pois ela foi gravada do mesmo jeito que as outras cenas de Pattinson, contracenando com outros atores, foram: ele sozinho, com a câmera no seu rosto (para sua consideração).
Quanto à narrativa, o excesso tem se tornado outra norma do “autor” norte-americano (e é isso que Bong se torna aqui). Jogue quantos elementos e temas quiser em um filme, faça uma salada amarga, que alguns deles vão respingar na plateia e na crítica (esta, tão rasa quanto o Trump de Mark Ruffalo) que se verá então obrigada a elogiar o filme por conta de seu discurso pró-palestina. Um filme de 120 milhões de dólares que é incapaz, ao longo de duas horas, de mostrar uma única cena de humanidade.
Pelo contrário, há um sadismo involuntário, na mutilação da pequena criatura, na tortura dos passageiros, na nojeira da comida como piada. E a maneira de resolver isso não é com humanidade, mas encontrando uma guerra no meio do nada com os seres que habitam o planeta alienígena - a forma como Bong encara o dilema da linguagem faz Dragon Ball parecer 2001 (1968).
Um filme infantilizado, cartunesco, desconjuntado. Uma tragédia em todos os sentidos, de um diretor que fez alguns projetos interessantes, mas que descambou para o pior lado possível: sem saber, ou sem reconhecer, o mesmo que elegeu o homem que agora ele satiriza.