Crítica | Amantes

OBSTRUINDO O AMOR PELO CINEMA

James Gray articula referências em direção ao único cinema que pode fazer


No primeiro plano após os créditos de Spring In a Small Town (1948), celebrado filme de Fei Mu sobre os problemas de um casal quando um amigo vem visitá-los após o fim da Segunda Guerra, uma mulher caminha ao lado das ruínas que restaram da muralha externa da cidade. Entre um escombro e outro, a grama já começa a tomar conta do local, e a sensação com os planos é de estranha liberdade: onde deveria haver contenção, há horizonte. Sua caminhada, no entanto, não passa de uma extensão da prisão na qual se encontra: em um casamento sem amor e com um marido depressivo pela guerra, Yuwen faz desses pequenos momentos o prazer de seus dias, como diz em sua narração que acompanha a cena.

Não existem muros caídos em Two Lovers - filme de James Gray sobre um rapaz de família judia que se apaixona por sua vizinha: uma loira, e impossível de se ignorar, Gwyneth Paltrow -, mas a relação de seus personagens com o espaço oferece um diálogo no mínimo curioso com a obra prima de Fei Mu. Antes disso, paramos uma década à frente, quando Luchino Visconti lança seu As Noites Brancas (1957), obra prima adaptada do clássico de Dostoiévski, que Gray se inspira na criação deste filme. Quem viu o filme sabe que, entre pontes, paredes e becos é, assim como todos os filmes de Visconti, sobre o desencadeamento de corpos no espaço até que seu encontro se torne inevitável: um filme que toca no mizoguchiano, na tangência de um mundo onde todos os elementos eventualmente convergem e/ou colidem. 

Gray não é, nem de perto, tão adepto da profundidade de campo como os nomes que mencionei acima. Seus filmes todos compreendem, e se relacionam e se sensibilizam com o espaço, mas estão muito mais próximos da superfície, de um rompimento com a tela, de uma ênfase na imagem frontal que, para alguns, remonta ao classicismo. O que há de escavação em seus filmes está mais diretamente ligado às buscas de seus protagonistas, e suas retratações narrativas muitas vezes condensadas na magnitude do gesto. Não sei se diria que o gesto, em Gray, é fordiano, mas é com ele que seus filmes encontram novas camadas, penetram novas dimensões, permitem que um filho encontre seu pai (A Cidade Perdida de Z, Ad Astra), ou que dois irmãos se re-aproximem com uma única fala enquanto a mulher amada desaparece (Os Donos da Noite).

De volta a Two Lovers, me parece ser o filme onde todas essas tendências se encontram, onde o gesto, e a maneira como este gesto é filmada em relação ao espaço, rege um filme que nasce da desordem que é o emaranhado de possibilidades. Pensemos no encontro de Leonard e Michelle, uma obra do acaso com uma aproximação pelo gesto: Michelle desce de seu apartamento porque seu pai está aos berros, Leonard a vê no corredor (acaso) e a convida para se refugiar em seu apartamento (gesto). Uma porta nova se abre para Michelle e uma nova oportunidade se abre para Leonard (que descobrimos, mais cedo, ter terminado um noivado há pouco). 

A dança se completa com a encenação: assim como tantos romances do século 21, Two Lovers é também um comentário sobre o romance, em especial, de suas máscaras. Uma cena depois, Leonard encontra Michelle na rua (acaso), finge, para ele mesmo, não a seguir e depois finge, para ela, não a ter visto (encenação), até que ela sorri para ele (gesto) e permite que a porta se abra mais uma vez - Leonard, inclusive, faz um jogo de contar as portas do trem conforme ele passa.

Filmado e situado no século 21, mas ainda antes de sua avassaladora e inevitável digitalização, não existem muros ou ruínas em Two Lovers, o que vemos são portas que se abrem e se fecham em uma dinâmica de sufocamento inescapável. Pensemos em outra cena, aquela onde Leonard acompanha Michelle após seu aborto, e tem de se esconder do amante atrás da porta do quarto. Ou na cena capital do filme, onde Gray adapta o estilo de Visconti para o século 21 (para a tela alargada e a câmera digital) e Joaquin Phoenix dança com Paltrow por entre as vigas no terraço: o vemos abrindo a porta para chegar ao terraço, e então vemos a conversa de dentro: os dois podem estar livres, com apenas céu a seu redor, mas a cena comunica uma prisão.

Na cena em questão, Gray não corta em nenhum momento, não recorre ao contraplano nem quando este parece ser a norma. Quando tantos cineastas filmam em widescreen sem reconhecer seu potencial, Gray o utiliza para adaptar o filme de Visconti, para trazer para a superfície da tela o relevo e a profundidade. A câmera apenas gira, mas a impressão é que o espaço da cena se torna cada vez mais profundo. E o que responde essa escavação é o esgotamento das relações de seus protagonistas, o esgotamento de suas máscaras: mais precisamente, o esgotamento de o quanto Leonard se permite dobrar por Michelle. Nessa cena, rodada em uma única tomada, assim como naquele plano devastador de A História do Último Crisântemo (1939), vemos os limites individuais dos dois, e também de sua relação. Não é preciso dizer que a cena termina com Leonard fechando a porta do terraço.

Gray não é cineasta de estilo limitante (como muitos de seus contemporâneos), e outra dinâmica devidamente cinematográfica tem papel substancial no filme. Mais cedo, olhando por sua janela que dá para um recuo do prédio, Leonard encontra Michelle, janelas acima. Ele chama sua atenção com um flash - sabemos, no entanto, que é incapaz de fotografar pessoas, apenas lugares -, e os dois começam a conversar. Mais tarde, atingem o ápice da fantasia hitchcockiana, um quase-sexo pela janela e pelo telefone. Toda essa cenografia me lembra também Sétimo Céu (1927), obra prima de Frank Borzage, um dos precursores da língua estabelecida por Mizoguchi. E assim, mesmo no contraplano, ou melhor, por meio do contraplano, Gray estende seu experimento com o cinema sintético em tempos de digital. O espaço segue sendo o mesmo, conectado e escavado, todo o espaço entre um apartamento e outro.

Mas se há um senso de romance - e não tanto de romantismo - no que fazem Borzage, Mizoguchi e Visconti, Gray usa toda essa conexão para filmar o desencontro. Em um filme de encontros fabricados (além de Leonard fingindo não estar “perseguindo” Michelle em diversas cenas, há também a filha do novo chefe do pai, “armando” um encontro com ele), são os desencontros, por espaços de tempo específicos, que se mostram incontornáveis pela narrativa. Um anacronismo que desorganiza a ordem do mundo: o celular pode aproximar, pode permitir perfurar o espaço, mas nunca domá-lo.

E por mais que assuma suas referências, Gray assume principalmente o tempo presente: em um filme de relatos, tudo que vemos é o momento. Leonard se comporta como uma criança, à mercê do mundo, momentaneamente capaz de controlá-lo, mas eventualmente subjugado por suas próprias escolhas (toda a sequência na boate, de ele tendo a porta aberta por Michelle, tomando conta da pista e então sendo trancado na parte de fora). O resultado é um amor não consumado, mas forçado. Uma relação destrutiva que não se consolida, porque os dois são incapazes de cobrirem o espaço que há entre eles e, principalmente, dentro deles (quando Leonard escreve que ama Michelle no braço, ele por um momento se coloca no lugar da avó de Michelle, mas é incapaz de supri-la).

O filme termina em uma concatenação demolidora: Leonard abraça a mãe se despedindo, e então abraça a nova noiva, enquanto olha para o nada. O gesto (o olhar para a mãe, o olhar para o nada), o sufocamento (o abraço da liberdade, o abraço da prisão), a encenação (o dizer que está tudo bem), o desencontro. Este, corporificado na imagem de Paltrow que se materializa das sombras, dizendo que não poderá ir para São Francisco, de todas as cidades, junto com Leonard.

Um corpo que fica, enquanto outro vai embora. Não existem ruínas, e ninguém cai de nenhuma torre. Em 2008, basta tentar amar.

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Crítica | Cidade dos Sonhos (2001)