Crítica | Late Autumn (1960)
EM CONSTANTE MOVIMENTO
Sem mexer a câmera, Yasujiro Ozu não para
A primeira imagem de Late Autumn, logo após os créditos iniciais, é a de uma torre de energia, vista por galhos mais ou menos pelados de uma árvore. O plano seguinte mostra a mesma torre, agora de mais distante, por entre outras árvores, estas mais recheadas de folhas. O terceiro plano mostra a escadaria de uma casa, em meio à muitas árvores, onde uma velhinha está sentada com uma criança ao lado. A velhinha quase não se mexe, entregando seu movimento tão qual o balanço das árvores com a brisa gelada. A criança sim, rompe com a harmonia ordenada da paisagem, chama atenção da tela para si.
Todos os filmes de Yasujiro Ozu desde 1936 (ano em que finalmente aderiu ao som) possuem o que ficou conhecido como pillow shot. Planos estáticos de espaços vazios que normalmente ligam uma cena à outra, vezes como âncora para o ritmo melódico de sua montagem, outras como receptáculos de símbolos e alegorias um tanto misteriosos. Eles podem ser um varal de roupas, um prédio, um corredor.
O que diferencia… ou melhor, o que nos faz perceber que um plano estático é uma filmagem e não uma foto? Nos que iniciam Late Autumn temos o vento e os movimentos diametralmente opostos da senhora e da criança ao seu lado, mas em outros tantos durante este, e outros filmes de Ozu, nada se move. É um dilema, um paradoxo que reside entre duas formas de arte inerentemente conectadas: enquanto o filme é efêmero e a foto é imutável, um filme nos permite ver mais de um determinado momento, mas nunca nos permite compreendê-lo em sua totalidade pois a imagem não para de se movimentar. Já a foto eterniza o momento, mas nos impede de compreender as coisas para além deste único registro.
Seria um plano estático, então, uma espécie de ponto entre o cinema e a fotografia?
Em Late Autumn, que decidi assistir no fim do outono, esse dilema retornou a mim e, junto com ele, uma possível resposta. Em Ozu, cineasta que poderia fazer um filme inteiramente com fotos devido a seu controle rítmico da decupagem, a resposta à imobilidade pode ser encontrada no granulado da imagem colorida, a mais nova dimensão que faz seus filmes atingirem um potencial ainda maior. Um granulado que não denota um envelhecimento, pelo contrário, mas o rejuvenescimento, a constante mudança do e no mundo. Mesmo no mais estático dos planos, basta se deixar levar pelo grão da película (assistir um filme colorido de Ozu em tela grande se torna um objetivo de vida), e mais uma vez estamos diante do dilema: o que se move e o que permanece.
Dilema que Ozu aborda em todas as camadas de seus filmes. A diluição narrativa, de histórias envolvendo mudanças geracionais no Japão, em uma série de eventos cotidianos: o mesmo de sempre, e o novo. A concatenação dos planos, a melodia de imagens com movimento interno mas nunca basilar (não lembro quando foi a última vez que ele mexeu a câmera), um cinema que nos permite perceber o movimento dentro de enquadramentos arquitetônicos, estes re-enquadrados pela câmera. E, por fim, o granulado da imagem, aquela sensação de que, mesmo quando imóveis, as coisas envelhecem, ganham sentido, perdem a forma.
Um filme de Ozu é sobre o que não se move. O único cineasta, que eu conheço, que conseguiu filmar o vazio entre uma imagem e outra, o vazio dentro de uma imagem, e o vazio presente na própria película. Não há ninguém igual.
Se há transcendência, ela vem da imanência, por si só um novo paradoxo a ser desvendado.