Crítica | Dark Glasses (2022)
DESPERTANDO OS SENTIDOS
Filme de Dario Argento faz comentário sobre a incisão do digital no mundo e no cinema
“A ênfase que damos às nossas próprias identidades acima de tudo se manifesta de forma evidente na cultura da selfie. Em todo o mundo, visitantes de locais incríveis, de cenas de grande beleza, passam a gostar de vê-las, mas, ao mesmo tempo, o principal objetivo de muitos outros parece ser tirar e publicar selfies. Dessa forma, como em outras já observadas, a afirmação do "eu" parece ter se tornado mais importante do que olhar para o mundo. O cânion supostamente espetacular do Oregon que não pude visitar no ano passado sem dúvida não é o único local que agora está fechado por ser considerado inseguro devido às hordas de pessoas que tiram selfies. Muitos instrutores de história da arte agora exigem que os alunos provem que viram uma obra de arte pessoalmente enviando uma selfie de si mesmos em frente a ela. Eu poderia argumentar que esse incentivo a tirar selfies, que sem dúvida terá o efeito subliminar de redirecionar a atenção de uma pessoa em uma visita ao museu, é mais prejudicial do que arriscar que os alunos vejam essas obras em reprodução"
FRED CAMPER, NOSSA CULTURA ARRASADA
Ou sobre como perceber tendências antes delas mesmo se perceberem.
Um poderia dizer que a influência das redes sociais na arte (e digo arte, e não produto) demoraria mais para ser percebida do que a década e meia que temos de redes sociais. Influência que vem após, é claro, da influência na cognição humana, na maneira como processamos o mundo que vem à nós por meio dos sentidos. É de se pensar que alguém que não tem um smartphone conseguiria de alguma maneira mitigar estes efeitos, freá-los, ao menos durante seu curto tempo de vida, irrisório na marcha da humanidade (mas talvez nunca menos irrisório do que na era que as coisas se movem rápido de mais). Ou de se pensar, também, que alguém que nasceu em outra época (e reverencia uma época ainda mais antiga) fosse capaz de resistir à esses impulsos por conta de uma estrutura há muito e por muito lapidada.
Não é o caso de Nolan e não é o caso de Scorsese. Assistindo à seus últimos filmes, é possível perceber traços de seus respectivos cinemas. O de Nolan, um incipiente, um originário da linguagem tiktokiana, do descaso com o plano, da pluralização da unidade (e não expansão, ou ampliação, como é o caso de alguns dos cineastas normalmente ligados ao fluxo) para além do que a câmera pode captar. O de Scorsese, um cinema que muito pega e pouco cria, que muito analisa e pouco sintetiza, mas que em seus melhores momentos consegue criar uma cacofonia perturbadora e valiosa com o cinema que veio antes. Ambos, porém, subjugados às mesmas tendências de Greta Gerwig, dos Daniels, dos Safdie, de Coogler, de Peele, Bong Joon-ho. É difícil ver uma cena em Oppenheimer (2023), ou em Assassinos das Luas das Flores (2023), que não seja mutilada pela montagem, pelo excesso de planos, pela necessidade de olhar de outro ângulo para a mesma coisa não para adicionar, mas para direcionar. Nolan sempre foi um cineasta de controlar a atenção mais do que qualquer coisa (atenção sempre nele, nunca na cena), mas com Scorsese isso é relativamente novo.
Em dois filmes sobre tempos diferentes, e sobre os mundos que surgiram a partir destes tempos, tudo o que se vê é o aparato, a máquina, o processo.
E aí já podemos pensar em outros tantos filmes e diretores, e na maneira como o modo de olhar, mostrar, registrar da nossa sociedade influencia nas imagens que desenhamos. Tanto nestes filmes, como nos dos diretores acima, você certamente vai ver os mesmos planos de rostos centralizados no plano alargado (talvez a maior inutilidade em um mundo de rostos e “eus”), de atores dispostos como personagens de anime, uma digitalização do romantismo que ignora por completo o que veem estes personagens (pois o que veem, literal e semanticamente, é uma câmera). Planos de filmes que não respondem mais ao que está dentro do filme, mas à maneira como serão vistos (para sua consideração).
Em Dark Glasses, filme de um cineasta muito superior a todos estes, há a mesma tentativa de sufocamento, de subjugação. Há o mesmo tipo de plano, o mesmo tipo de desfoque, a mesma relusência da imagem cristalina do digital, que torna norma também a forma de captar e tratar uma imagem. Um cinema que perde dimensões e impede autoria. Tudo é norma.
Mas o que há no filme de Argento é um suspiro, um sinal de vida, um espasmo de um corpo ainda tentando sobreviver em meio ao digital. O que nunca houve com Argento é qualquer interesse em “histórias reais” para além daquelas que vemos por meio da arte (pinturas, esculturas, arquiteturas), qualquer interesse nas “histórias da vez”, pois estas são apreciadas não por autores, mas por profissionais da indústria. O que Argento faz, neste filme e em tantos outros, é um comentário sobre os tempos que vivemos não por meio do texto, mas por meio dos sentidos, e como estes são filmados e como estes incidem na obra filmada.
Aqui e ali vemos também os respiros de sua autoria: o plano aberto que enfatiza o gesto, o movimento, a reação de corpos em relação a outros (Illenia Pastorelli está monumental em como se subjuga, se adapta e, por fim, adota a cegueira), que cria um filme dentro do filme, e não uma relação de imagem e espectador ala reels e selfie no Instagram. Sua cena com o cliente, que a diz preferir cega por não conseguir enxergá-lo, é de uma dicotomia impossível à diretores que tentam filmar ambiguidades como se fossem superiores por conhecê-las: cena vulgar e delicada, de intimidade e de exposição, de olhares e não olhares, que se submete a um toque que existe apenas no filme e não precisamos assistir (pra completar: preservação e vulnerabilidade).
Pois o que resta quando a visão vai embora? Há ainda o som, há ainda o toque, há ainda o paladar (mesmo que esse se afogue no sangue) e há ainda o cheiro (a maneira como descobrimos o assassino é um pequeno toque que remonta à genialidade de outrora de um dos maiores artistas vivos). O mundo não é só imagem, e o cinema não pode apenas ser-lo, mesmo quando é sobre (e este filme inegavelmente o é) o modo como as recebemos, as processamos e as consumimos.
A primeira cena, tirada de um sonho febril de Shyamalan (ao lado de Fincher, um dos únicos autores no cinema norte-americano atual), é uma benção cósmica: o não poder ver o sol, que a tudo toca. A última, uma elegia à recém encontrada solidão. Em um mundo onde tudo se vê, e todos são vistos, ninguém mais se enxerga.