Crítica | Toy Story 4
Confesso que saí, de certa forma, desiludido do cinema.
Não por assistir um filme que te faz revisitar a sua infância e se sentir mal por tê-la perdido, os outros três, e especialmente o último filme da franquia, já haviam despedaçado meu coração e continuam a fazer cada vez que os revisito. Minha desilusão também não tem a ver com o fato de que, apesar de muito bom, este é provavelmente o mais fraco dos quatro até então, e também não tem a ver com seu emotivo, apesar de "previsível” final. Não, minha desilusão está por conta de que, após ter assistido a todos estes filmes dublados e amado cada segundo, hoje, em 2019, com os avanços tecnológicos que fazem deste filme uma milagre técnico, a falta de sincronia entre boca e voz começa a me atrapalhar de forma que não fazia quando meus olhos de criança estavam apenas maravilhados com o que viam. Realmente, aqueles anos dourados estão ficando cada vez mais distantes.
E para dar continuidade a esta crítica, volto a fazer um protesto similar ao que fiz em minha crítica de “Detetive Pikachu”, onde comentei em como a dublagem deveria ser opção e não obrigação, sendo que a grande maioria das salas, no Brasil, possuem apenas a versão dublada. Em uma das primeiras cenas do filme, quando Woody olha com tristeza para uma das outras personagens, se você não enxergar Tom Hanks em seu rosto é porque simplesmente nunca viu um filme com o ator, se isso é possível. Mas sim, a dublagem brasileira faz bem nos papéis principais, dentro dos padrões possíveis para uma dublagem - que nunca supera o original que tem mais recursos, mais talento, mais preparo e mais tempo, e isso não é uma discussão a não ser que você ache que a empresa responsável por qualquer dublagem seja mais cuidadosa em seu trabalho que a Pixar, um dos maiores estúdios do planeta Terra -, pecando apenas nas novas adições que contam com as presenças ilustres da dupla Key e Peele, do queridinho da internet Keanu Reeves e do inesquecível Carl Weathers.
Com isso fora do caminho, é seguro dizer que, apesar de “desnecessário” (e cometo um crime ortográfico ao usar aspas e itálico para enfatizar que, por mais que não fosse necessário, bom cinema nunca se torna o oposto deste) e de utilizar a já conhecida fórmula da Pixar - e, especialmente, da franquia “Toy Story”, onde o personagem principal se perde/vai à uma aventura/têm uma missão que envolve cobrir longas distâncias para, normalmente, chegar em casa/encontrar alguém - parece simplesmente impossível para os estúdios fazer um longa abaixo da média (com a exceção da franquia “Carros”, obviamente). Este, o quarto de uma trilogia anteriormente perfeita, acaba subutilizando alguns de seus personagens clássicos, e bate nas mesmas teclas de seu antecessor, porém sucede em divertir e, mais uma vez, tocar seus espectadores nos levando à mais uma bela viagem a este mundo tão colorido e inventivo.
Os aspectos técnicos estão estonteantes a todo o momento, atingindo possivelmente o nível mais alto dos estúdios - e talvez da animação, como um todo - até aqui. Logo na primeira cena, passada em uma noite chuvosa, é quase como se estivéssemos assistindo à um live action. E estes cenários, surpreendentemente, não destoam nem um pouco do visual cartunesco dos bonecos, pois afinal ainda são bonecos, por mais que os avanços tecnológicos permitam com que cada um deles, sejam feitos de pano, plástico ou porcelana, pareçam vivos sempre que seus donos não estão os olhando. E o competente roteiro de Stephany Folsom e do já veterano na Pixar Andrew Stanton consegue criar situações perfeitas para que o brilhantismo técnico do filme tome ponto central na narrativa. São diversas sequências geniais capazes apenas para personagens que vêem o nosso mundo como algo gigantesco e por mais que você as conheça desde o primeiro filme, o efeito continua o mesmo, muito graças ao controle das cenas do diretor Josh Cooley, estreando como diretor de um longa metragem com maestria.
O trio é hábil também em criar, de longe, os vilões mais tenebrosos da franquia, sejam os espectadores crianças ou adultos, apelando para bonecos e temas visuais que muito já causaram no cinema de terror, além disso suas motivações os transformam em figuras complexas passíveis de compaixão e empatia. Os novos personagens são divertidos e inventivos, como o Garfinho que, além de movimentar a narrativa e oferecer uma metáfora interessante com a relação das crianças com criações delas próprias, consegue ser protagonista de uma piada repetida que parece nunca perder a graça. O dublê Duke Caboom convence em seus dois momentos em cena e faz alusão à figura de Keanu Reeves, mas o momento mais engraçado do filme e talvez de toda a franquia fica por conta da dupla de bichos de pelúcia e o estreante diretor é inteligente o suficiente para repeti-lo, com um efeito ainda maior, nos tradicionais créditos finais do filme.
Confesso que a própria existência e índole de Woody quase me deixaram desconfortável em certos momentos, afinal ele é um personagem que, se pararmos para pensar, é extremamente trágico. Ele não superou Andy e não suporta se sentir inútil, talvez como muitos de nós em várias fazes da vida e cabe a reflexão se os bonecos não seriam referências, também, à terceira idade, onde parece que a vida já a muito escapou. Mas suas atitudes, quase sempre marcadas por estes acontecimentos, são muito bem contrastadas com a excelente volta de Bo Beep à franquia, figurando como seu exato oposto, uma boneca que superou suas perdas e encontrou uma nova forma de viver.
Assim, com diversos personagens que, no fim, buscam o mesmo objetivo - achar um motivo para suas existências - e com muito bem colocadas alegorias ao suicídio, depressão, feminismo, existencialismo e niilismo (relacionarei os personagens com suas condições específicas ao final da crítica, com spoilers), a franquia continua a figurar como uma das mais ricas e substanciais da história das animações. Sem nunca deixar de ser interessante e leve para o público infantil.
Infelizmente, pouco espaço é dado à Buzz, que retrocede como personagem voltando a se questionar como no primeiro filme (por mais que isso aconteça em cenas hilárias, porém repetitivas) e Jessie (que é praticamente uma coadjuvante junto aos brinquedos antigos que, sim, fazem falta) são penosas, mas em sua totalidade “Toy Story 4” é um belíssimo filme que, apesar de não adicionar muito à seu rico universo, continua convencendo e não exclui a possibilidade de novas histórias que, a quem queremos enganar, adoraríamos assistir.
8.3
Agora, abaixo, comento a cena final e alguns dos personagens com spoilers, então estejam avisados.
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Sobre os personagens:
Garfinho, criação bizarra de Bonnie em sua primeira aula se torna seu boneco favorito, afinal, ela o criou, logo, cria uma relação quase de mãe e filho com ele. A criaturinha que, em sua mente (bonecos tem mente? Bem ele não sabe também), deveria ser uma mistura de garfo e colher, entende que seu propósito já deveria ter sido cumprido e apresenta uma fixação com o lixo, aonde acredita ser seu lugar. As sequências são hilárias, mas é impossível não notar temas relacionados à depressão, suicídio e, até mesmo, do preconceito, que insiste em dizer que certas pessoas nasceram para ser apenas poucas coisas, sem perspectiva de mudança. Ele ter conseguido perceber que pode desempenhar novos papéis é uma bela mensagem que nossos limites deveriam ser determinados apenas por nós próprios.
A boneca Gabby Gabby, uma vilã de dar calafrios durante boa parte da projeção e clara alusão à Anabelle, queria, apenas, encontrar sua voz, mesmo que para isso precisasse tirar a voz de outra pessoa. Uma alegoria clara à pessoas que, ao diminuir outras, acreditam ser capazes de atingir seus objetivos, mas quando a menina Harmony a rejeita mesmo após a boneca ser consertada, ela apenas encontra paz ao perceber que a amizade é algo que deve ser construído de forma sincera.
Se a transformação de Bo Beep, de uma camponesa que deveria ser sempre salva, em uma boneca independente e que toma as rédeas de sua vida já não fosse uma alusão clara à postura feminista que a Pixar vem adotando, ao se despedir de seus amigos Woody tem o nobre ato de entregar seu distintivo à Jessie, a nova líder do antigo bando. São mudanças que, aos olhos das crianças, não acarretam em discussões ou momentos de reflexão, mas que de forma sútil as tornam cada vez mais aceitativas e mais propensas a entender o amor universal que é tema constante deste belo universo cinematográfico.
Até os personagens secundários, como os bichinhos de pelúcia e o sensacional Duke Caboom, tem suas próprias dores e vontades e todos são, de alguma forma, ajudados por Woody e Buzz, que a muito já perceberam quais deveriam ser suas devidas funções na vida, por mais que ainda as questionem assim como todos nós fazemos, afinal, o ser humano tende a nunca estar satisfeito perante o gigantesco universo que nos rodeia, tornando a inquietação provocada pelo niilismo, também, um tema central. .
Sobre o final:
Era impossível fazer algo mais emocionalmente destruidor que a cena final do terceiro filme. Ao assistir a última vez que Andy brinca com seus amados bonecos, percebemos que não valorizamos este momento como deveríamos quando aconteceu em nossas próprias vidas. Desta vez, é Woody, em busca de novas razões para viver, que se despede de seus amigos e se seu abraço em todos eles não fosse o suficiente para fazer você, ao menos, lacrimejar, a maravilhosa forma como o filme termina, com Woody e seu melhor amigo Buzz completando a icônica frase que marcou a franquia enquanto se vêem, à distância, talvez pela última vez, deve ser. Eles não podiam se ouvir, ou entender o que o outro estava falando, mas meu palpite é que ambos sabiam. Afinal, sua amizade, assim como estes filmes na nossa memória, vão durar para o infinito… e além.