Crítica | A Dama Fantasma

NOIR CONSCIENTE

em grande filme, robert siodmak manipula e apresenta elementos do noir


Em seu inacreditável No Silêncio das Trevas (1946), Robert Siodmak propõe uma ruptura. Se trata de uma única cena (embora o filme todo mereça distinção), a qual comentei melhor outrora, onde vamos do Cinema Mudo pro Clássico, do Clássico pro Moderno.

Dois anos antes, no fatídico 1944 onde o Noir pressente mas não prevê o fim da guerra, invadindo os Estados Unidos de uma sensação de claustrofobia, inquietação e loucura, marcada no Cinema pelas sombras que cercam personagens que se esgueiram por becos suspeitos, Siodmak lançaria este A Dama Fantasma, filme menos ambicioso, mas não menor, onde não bem ataca essa transição, mas não deixa de comentar sobre ela.

Tendo visto apenas três de seus filmes, já me parece claro o porquê de ser considerado um dos diretores essenciais do fenômeno mais interessante que acometeu o Cinema Norte-Americano, e daquele que se tornou também o movimento mais propriamente estadunidense, ao lado do faroeste.

Curioso que, em 2023, o único gênero que parece seguir conversando com a essência do país seja o coming of age. Talvez porque, diferente da sensação nos anos 40 de que todos deviam amadurecer prematuramente, hoje temos mais tempo para ficar perambulando por aí e nos corroendo de ansiedade - se antes, em tempos de guerra fria e teorias da conspiração não enxergava-se muito além do que estava bem na frente, hoje o mundo esta a disposicao no bolso. No fundo, um sentimento semelhante ao propulsor do Noir, mas onde os sobretudos e chapéus são trocados pelos uniformes de escola.


À ESPREITA

Em meio a meus estudos, sejam eles do Noir ou qualquer outro período da história do Cinema, me intriga muito o quão consciente estavam aqueles cineastas do que ocorria ao redor deles. Algo que, embora vá abordar novamente no próximo tópico, aqui tem mais a ver com o fato de que tantos filmes semelhantes foram feitos no mesmo período (e tantos no mesmo ano) e, sem qualquer acordo prévio, anos depois foram compreendidos e historicamente organizados como uma espécie de movimento. Não houve manifesto (Cinema Novo), ou sequer uma reunião de patota (Nouvelle Vague), o Noir apenas tomou conta.

E embora sua natureza ainda seja motivo de debate, acredito que ainda hoje faça parte do consciente coletivo. Os exemplos são muitos, mas sem nem saber dizer de onde, boa parte das pessoas reconhece os sobretudos, os chapéus, o perto e branco, a melancolia.

De certo modo, a característica marcante de A Dama Fantasma está em ser um filme auto-consciente de seu lugar no tempo, ou talvez do tempo como um todo. Se, como proferiu Bazin, o quadro é centrípeto e a tela centrífuga (citação que voltarei a usar mais a frente), nestes dois filmes Siodmak parece fazer uma combinação destes dois movimentos, como se todo o passado, e muito do futuro, do Cinema girassem e se encontrassem nas poucas mais de três horas dos filmes combinados. O todo entregando para o um, e o um devolvendo para o todo.

Isso só seria possível para um cineasta consciente daquilo que está ao seu redor, do tempo que passa por ele e por sua arte, e de como a assimilação desses códigos ao alcance são o suficiente para gerar algo próximo de uma matriz. Não que A Dama Fantasma seja um filme deste tamanho, mas com certeza foi uma experiência importante para que, dois anos depois, Siodmak lançasse um filme para sempre marcado por sua influência em Vertigo (1958) e suas próprias espirais. 


UM JOGO DE ARQUÉTIPOS E CONVENÇÕES

Ciente e consciente, A Dama Fantasma me parece ser um filme que se propõe a apresentar o gênero, a assimilar o presente, para então propor essa conversa com passado e futuro.

Essa consciência, de diferentes tempos que se cruzam em meio à relatividade da arte é refletida na maneira como o filme retrata as relações humanas, presente na interação do (primeiro) protagonista com aqueles ao seu redor. A esposa, espécie de Rebecca (1940) sem permanência, de Judy sem materialização, se afasta dele por estar presa no casamento, em sua repetição e exaustão (para além do título do filme, Hitchcock adaptaria outra história de Cornell Woolrich em Janela Indiscreta, 1954). O dono do bar, o mecânico, ambos com diálogos de NPC, de seres que vivem a mesma vida a tempo demais, e agora parecem parte permanente e desgastada do mundo esvaziado retratado pelo Noir. Para todos estes, nada chama atenção, um dia é sempre um dia, os detalhes podem deixar pulgas atrás da orelha, mas mesmo estes se somam e depois viram memórias que podem ou não ser usadas em filmes futuros. Por isso, a câmera ficar neles enquanto o protagonista sai diz tanto: pode ser que voltemos a seus mundos particulares, o fade para as cenas seguintes representa uma elipse frágil, sugestiva, consciente.

Scott, até este momento e na verdade por todo o filme, é o único que sente o tempo passando ao redor e em si mesmo. Ele sai de casa, vai ao bar, vai ao espetáculo (sempre um momento mágico encontrar uma atriz brasileira em um filme inesperado, memória longa a Aurora Miranda), em uma pequena empreitada modernista, onde tenta de algum modo fazer essa sensação, de passar do tempo, passar.

E então ele encontra a tal mulher fantasma, reminiscente da mulher gato de Sangue de Pantera (1942, e Tourneur também adaptou um conto de Woolrich em O Homem Leopardo), uma criatura de um tempo, de um mundo diferente, que pode ser a única saída para uma vida mundana e estagnada, representada de maneira absoluta no casamento falido, no medo da prisão, na irreversivel pena de morte. A morte da esposa, no caso, é apenas um fardo. Não emocional, mas uma última amarra que o prende neste mundo cansado.

É dessa ansiedade, dessa insatisfação e desconexão com o mundo ao redor que a maioria dos filmes Noir partem. Até ali, tudo sob encomenda: uma mulher foi assassinada, um homem aparentemente inocente foi acusado, uma mulher fatal apareceu e evaporou como um verdadeiro fantasma.

Mas Siodmak vai além do protótipo, da convenção mor, e desenvolve no filme uma série de cenas que me remetem a essa ideia de um filme amostra, quase como algo a ser passado em um museu onde um pouco de tudo, de antes e depois, é apresentado.

Agora trocando de protagonista (outro mote que seria reconhecido como Hitchcockiano após Psicose, 1960), o rosto misterioso de Ella Raines assume o filme e se torna a personificação não bem da mulher fatal, mas sim da mulher fantasma que dá título ao filme, onipresente em filmes como Sangue de Pantera, Laura, Rebecca. Uma criatura que aproxima o filme do sobrenatural, seja narrativa ou formalmente, mas dessa vez não por ter ela essa qualidade fantasiosa, mas por ser ela quem se propõe a transformar a narrativa em algo mais do que um caso mundano.

Kansas, como é carinhosamente chamada pelo chefe condenado à morte, logo se torna uma personagem deliciosamente complexa. Em sua busca pela verdade e por justiça, ela se torna uma mulher fatal para aqueles com quem interage, uma encenação dentro da interpretação. O tipo de brincadeira que, nos lembrando de No Silêncio das Trevas, parece ser um prazer voyeurista de Siodmak.

E vejamos suas interações com as criaturas previamente mencionadas e como cada uma conversa com um tema diferente: quando encontra o homem do bar, se senta como um fantasma em meio a multidão e o segue até em casa, transformando sua deprimente e longa jornada diária em uma sequência de It Follows (2014), o Noir como um poder corrosivo que ressignifica e transforma o comum. O uso de espaços e de antecipação, já importante na forma como Scott havia se encontrado com aquelas criaturas, agora é tomado de escuridão e apreensão, com um enfoque extra nos cenários e na manipulação de atmosfera - a cidade por vezes parece saída de um filme expressionista. Na cena, o acaso do encontro, portanto, é substituído por uma obsessão momentânea e uma arquitetura maquiavélica, onde a figura de Ella não mais é da adorável assistente, mas da propulsora do horror na cena.

Já quando seduz o baterista (esse um homem também entediado com a mesmice, e que procura na plateia - o contrário da ideia do Cinema - algo para se entreter), o filme deixa as composições mais sutis e abraça enquadramentos mais agudos, uma montagem mais instável, Ella inclusive adota gestos e feições menos sofisticadas. Quando encontra a antiga mulher fantasma (ao encontrá-la, a transição se faz completa de uma para a outra), entramos em território de terror psicológico, de estranheza pela psique, e não pelo mundo físico. Por fim, toda a sequência envolvendo o verdadeiro assassino toma contornos de slasher, décadas antes dos considerados primeiros exemplares do gênero (embora o Noir tenha outros casos semelhantes), além de completar a cartilha com a conspiração criminosa.


UM OLHAR MIZOGUCHIANO

Voltando a ideia da ciência dos cineastas com o que ocorre ao seu redor, sempre me pergunto o quanto os filmes cruzavam os mares. Principalmente aqueles vindos do Japão.

Comumente creditado como popularizador do país para o resto do mundo, Akira Kurosawa tem influência onipresente no Cinema Norte-Americano pós-anos 60, mas porque então tantos filmes parecem conversar com Kenji Mizoguchi muito antes disso?

Me interessa especificamente uma cena, onde Ella encontra a antiga mulher fantasma, e agora precisa extrair dela uma confissão. Ao abrir a porta, é como se entrasse em uma dimensão isolada, particular, que se assemelha a uma casa de bonecas, como se o tempo parasse e o espaço, ali, tivesse regras diferentes.

Tudo acontece em poucos planos: um leve zoom na mulher, um contraplano reativo, um enquadramento das duas. Logo, frustrada, Ella deixa a sala conforme a câmera a segue. Um raccord anuncia sua troca de portas, sua volta ao mundo normal. Mas, por qualquer motivo, decide retornar, uma decisão aparentemente arbitrária que, captada pela câmera, toma contornos indescritíveis. Quando retorna, a câmera assume sua visão, mas o espaço, a dimensão do quarto, não permanece o mesmo: a mulher não mais se encontra no mesmo lugar, e após um breve mas intenso movimento de câmera (ou de olhar) que a procura, retornamos ao rosto de Ella, transformado. Algo mudou. O zoom na mulher, agora sentada ao chão, leva a cena à ressignificação, não por uma lógica narrativa, mas por uma combinação de movimentos de câmera: ao desvendar este, a chave para a resolução do mistério se apresenta à sua frente.

Seguindo a ideia de Jacques Rivette, de que o Cinema de Mizoguchi é um de modulação, esta nem sempre é lei em A Dama Fantasma. Pelo contrário, o filme é inerentemente norte-americano, Hitchcockiano, Wellesiano, até Fordiano. Mas, como menciona Bruno Andrade em sua essencial lista de Filmes Que Falam o Mizoguchi, é a chave, o detalhe que coloca tudo de volta, que faz a água encontrar seu nível.

Nessa cena, e em outras e na confissão final, o espaço é ressignificado, o espaço é compreendido como uma dimensão metafísica, que existe para além do campo. A tela é centrífuga, joga sua atenção para fora do campo. E A Dama Fantasma, com seu título que já sugere algo além do mundo físico, além do compreensível com os olhos, mostra pinturas e esculturas, mas conversa pelo cinema. Um filme que fala o Mizoguchi, enquanto segura um grito abafado de Hitchcock.

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