Crítica | Silêncio nas Trevas

a matriz do horror

Filme de Siodmak é síntese de principais mudanças do Cinema


Os primeiros minutos de Silêncio nas Trevas (em inglês, A Escadaria Espiral) são certamente uns dos mais interessantes de todo o Film Noir, quiçá de todos os anos 40.

Em não mais que uma sequência, Robert Siodmak constrói metáforas claras à passagem do Cinema Mudo ao Cinema Falado, antecipa em uma década a cruzada pelo modernismo de Alfred Hitchcock (e inspira um dos motes de seu filme mais celebrado), estabelece o voyeurismo como tema central, inunda o Noir com traços de Slasher, e transforma a câmera em uma força ativa que nos faz ir além dos pontos de vista.

Eu até queria poder elaborar mais, mas não acho que fosse fazer melhor do que a sumarização feita por Dennis Grune, em texto brilhante sobre o filme, que você pode ler traduzido livremente abaixo:

Apesar de se passar inteiro em um casarão isolado, o filme abre em uma pequena cidade. Helen, empregada da casa que não fala desde um trauma na infância, assiste a um filme sendo mostrado em um hotel, escondida. O filme é O Beijo, de William Heise, de 1896, nos colocando décadas no passado: em um filme de 1946, situado em 1916, as pessoas que assistimos estão assistindo um filme de duas décadas atrás… o curta de apenas um minuto é propagandeado como um exemplo da nova maravilha do Cinema, e isso mostra o isolamento da cidade, na qual as coisas novas chegam tarde, o que por sua vez mostra o isolamento ainda maior da mansão Warren, para qual Helen logo deve retornar. Mais importante, ao nos transformar imediatamente em voyeurs, Siodmak estabelece o voyeurismo como o tema central: voyeurismo - o ímpeto por trás do Cinema….

A câmera lentamente, de maneira invisível, sobe as escadas para mostrar uma hóspede do hotel em seu quarto: uma jovem deficiente física. Ela tira um vestido de seu armário, e conforme se vira, a câmera penetra o closet e encontra um olho à observando - o olho, em closeup, do assassino. Uma música sinistra dá o tom do voyeurismo que segura os outros voyeurs: nós. Uma virada da lente nos permite ver a garota colocando seu vestido da forma que o assassino à vê: distorcida; desumanizada. Siodmak, em uma jogada de mestre, relata o olhar do voyeur com o olhar da câmera com o olhar da audiência, nós, conforme assistimos, tão vidrados como a audiência abaixo no hotel, o que a câmera de Cinema produziu. Por causa do silêncio (exceto pela música), somos enrolados em um filme mudo dentro do som de Silêncio nas Trevas, e isso estabelece os dois modos, Cinema Mudo e Cinema Falado, como as duas coordenadas temáticas do longa. O silêncio está prestes a ser quebrado. Não vemos o assassino, e a vítima está perdida nas sombras; mas vemos as mãos dela se cruzarem em agonia ao ponto do estrangulamento. Algo cai no quarto e, os embaixo, ouvem. O filme mudo foi corrompido.

Apenas essa sequência inicial seria o suficiente para tornar o filme uma obra de valor inestimável para qualquer cinéfilo, mas o maravilhamento perdura. A sensação é que o próprio Siodmak parece contente em criar essa matriz do Cinema de Horror logo no início, evocando seu passado e plantando sementes para seu futuro, para depois seguir com o filme que queria fazer. Ainda existem surpresas - algumas evidentes, outras mais teóricas - e temas, mas talvez a grande qualidade de Silêncio nas Trevas seja justamente nunca desviar de seu caminho, e sim adorná-lo.

A própria velhinha agoureira é um ícone perfeito, centralizando a encenação de um plano conjunto com todos os membros da família ao revelar a ligação entre eles, a casa, e os assassinatos - o que gera uma reviravolta também clássica do gênero e de seus parentes mais próximos. A maneira como o assassino enxerga suas vítimas carrega consigo um pouco dos elementos do pós-horror que existe desde os anos 20, estabelecendo sua maneira torcida de ver o mundo, mas também um elitismo vindo de sua posição imune tanto quanto observador, quanto como ser humano - e a maneira como Sidomak enquadra os olhos remete diretamente ao Primeiro Cinema, e sua ênfase em centros de tela e experimentos com o olhar.

Experimentos que o diretor expande: em um momento chave, achamos estar observando Helen pelos olhos do assassino nas sombras, mas a câmera avança para revelá-lo escondido, nos tornando, assim, os voyeurs. Em outro, o assassino à olha por um reflexo no espelho que a centraliza no quadro, novamente nos fazendo vê-la por seu olhar psicótico.

E Helen acaba sendo a protagonista perfeita, não apenas por viver no passado (ela é muda, como o Cinema era), mas por rejeitar os modos das femme fatale de outros Noir dos anos 40. Inocente e perfeita de uma maneira clássica, ela precisa quebrar a barreira do som para pedir ajuda, então aceitando esse mudo de imperfeições e violações que veio com o som - o que torna o filme de Siodmak ao mesmo tempo conservador e sadicamente progressista. O melodrama entre ela e Dr. Parry é digno de um Nosferatu, com direito à uma carruagem em meio à uma floresta que Grune considera uma das passagens mais assustadoras de todo o Cinema, justamente por como torna a natureza uma força indomável que traz ao mesmo tempo uma ameaça, mas esperança - ela pega um galho para se proteger e, no fim, chega intacta à casa.

E se a transição é de deixar um A Maldição do Demônio (1960) e um A bela e a Fera (1936) no chinelo, a presença da casa é digna de um Rebecca (1940), O Vingador Invisível (1945) e até Psicose (1960), sendo visivelmente referenciada no recente Entre Facas e Segredos (2019). É como se o filme alternasse perfeitamente entre três cenários, cada um com seu poder e iconografia próprios: um Cinema, uma floresta e uma mansão, e conseguisse estabelecer cada um deles como um elemento vigente do momento da narrativa.

A mansão, no caso, com seu design gótico e com uma escada que serve de entranha e ligação para um porão escuro, é explorada de maneira quase cínica pela câmera, procurando detalhes e expressões que possam revelar qualquer coisa sobre a natureza sinistra do lugar e das pessoas. Mas a sensação nunca é de seriedade, e sim de um filme que sabe que existe além de seu próprio tempo.

E a sensação de assistir a tudo isso é de um prazer que se torna maior porque nada disso faria sentido para o Marco de dois anos atrás, que achava que assistir alguns filmes clássicos aqui e ali era “o suficiente”. E talvez o mais legal desse filme em particular, é como procurar nele as referências e matrizes que moldaram o Horror ao longo dos anos é quase como procurar filmes para assistir. Em uma época de mesmices, os anos 40 produziram centenas de Noirs, e mesmo aqueles que assistimos despretensiosamente podem se revelar um ponto chave para o Cinema, e para nós mesmos.

10

Anterior
Anterior

Crítica | Videodrome

Próximo
Próximo

DPOH#11: O jeito outrahora de ver filmes