Crítica | Videodrome
o caos da imagem
Em clássico, Cronenberg atinge o seu mais metalinguístico
David Cronenberg é definitivamente um diretor de ambiguidades.
Seus filmes todos contêm relações diretas, por vezes gráficas, com a imagem cinematográfica, seja pelo uso de efeitos práticos ou mesmo pela textura de suas imagens, que vão do aspecto pegajoso de A Mosca à esterilização de Cosmópolis. Ainda assim, se engana quem pensa que seu Cinema tem apenas isso a oferecer, ou mesmo que serve como um simples veículo de alegorias.
Sim, A Mosca é a metamorfose de Kafka, Cosmópolis é metalinguístico por natureza e algo como Marcas da Violência remete de maneira óbvia aos clássicos Noir e seus protagonistas de passados obscuros (Fuga do Passado, por exemplo). Mas mesmo sem contar com textos complexos e rebuscados, seus melhores projetos (pelo menos) estabelecem uma relação simbiótica entre seu referente e referenciais, criando assim filmes econômicos e diretos em suas resoluções, mas com uma infinidade de possibilidades temáticas e intelectuais que os elevam.
Videodrome, talvez seu filme mais aclamado, me parece estar entre um meio termo de atingir o ápice dessa estética e se perder no mar que ainda viria a ser navegado por outro David de maneira mais certeira e reveladora.
VELUDO IMAGÉTICO
Os Thrillers anos 80 são a extensão natural do que ocorrera com os 40 (Noir), 50 (modernização), 60 (novo) e 70 (giallo), com o maneirismo tomando conta a ponto de se tornar uma característica comum da década - e que se espalhou para outros gêneros.
Num geral, é um período que, nos Estados Unidos, me parece vangloriar uma certa estranheza mesmo em filmes mais comerciais, de E.T. a Batman, mas com certeza focando em um cerne que envolve de Palma, Ridley Scott, Scorsese, Cronenberg, Carpenter e, finalmente, Lynch. E não que ache que Veludo Azul é a resposta ideal para toda essa proposta pós-Bunuel (inclusive, acho que a estética só se resolveria de verdade nos anos 90), mas é meio inegável que o clássico do Lynch resume todas essas características de maneira mais evidente.
Videodrome, por toda sua relação de invasão e imersão com a imagem, que com certeza é o forte do filme, me parece ficar um pouco perdido na tradução de sensações para códigos. O mistério definitivamente é mais interessante, e conduzido de maneira mais provocativa do que em Scanners (que ficou a uma atuação central de ser meu favorito do Cronenberg), mas, assim como em Veludo Azul, parece que a peça que faltava do enigma mais tira a graça de desvendá lo do que oferece aquela catarse final que gratifica toda a experiência.
Embora a textura da imagem de Videodrome seja fascinante, os caminhos que toma como filme ainda soam erráticos. O que não quer dizer que não seja um grande filme, como falo mais a seguir.
O FIM DA HUMANIDADE
Cronenberg é um obcecado por mudanças e transformações que colocam em cheque a humanidade de seus personagens, e talvez a minha favorita seja justamente essa de Videodrome - mesmo com a execução não sendo tão, para usar um termo que se tornou meme, “redonda”.
Talvez seja, dos filmes que vi do Cronenberg, o que ele mais consegue orquestrar toda a encenação a seu favor. O melodrama é contido em prol da indiferença provocada pela tecnologia; a indiferença é balançada pela curiosidade e necessidade de novas formas de satisfação; a curiosidade corrompida e balanceada com o medo da verdade. Em um filme onde tudo parece caminhar para um caos urbano (que culmina em Cosmópolis), a unica resposta possivel é que estamos fadados a sucumbir dentro dele.
Assim, a imagem toma a forma da transformação. Não apenas a permite, como nas cenas onde os personagens são engolidos pela TV, mas se torna a transformação em si - James Woods e sua nova “mão” vende todas essas fases de maneira que chegam a superar Goldbloom. A “mosca” aqui é essa transição, assumindo um papel visualmente aterrorizante, e conceitualmente desesperador. A união de efeitos práticos e especiais é crucial nesse aspecto, por permitir a interação desses dois mundos que, no fim, excluem o único mundo de verdade. O que vemos por imagens nada mais é do que uma representação do mundo real que, para aqueles personagens, se torna tudo que existe quando abdicam de suas vidas em carne - e quando eles se tornam o filme dentro do filme, percebemos que estamos mais perdidos ainda.
Conceitualmente é difícil discutir contra o que Videodrome alcança. Minha questão está justamente na soma de fatores que permite esse híbrido de humano e imagem. Talvez uma revisita, mais pra frente, clareie as ideias e alce esse filme a novos patamares.
Por hora, me parece um passo necessário e certo, apesar de errático, na direção dessa sub espécie de Cinema que gosto tanto - um destino que não poderia ser outro se não o precipício de Mulholland Drive.