Crítica | Annette - O La La Land que deu certo

um espetáculo de manipulações

O filme de Leos Carax soa como uma versão extrema que faz tudo que o filme de Chazelle pensa, e mente, fazer.

Sebastian era um músico obcecado com o conservadorismo de um gênero que nem o pertence, Mia era uma atriz que apenas projetava o futuro. Ambos existem em um filme que dizia se apropriar do misticismo de Hollywood e de Los Angeles para homenagear musicais antigos enquanto propunha uma renovação, quando, na verdade, era apenas uma série de soluções simples que batem palmas para si mesmo. Quase uma aula de Cinema para quem acabou de descobrir “fotografia”, “teoria das cores” e “planos sequência”.

Portanto é possível dizer de que o filme de Carax é uma resposta que propõe cheques de realidade ao quase vencedor do Oscar. Como alguém que só assistiu dois de seus filmes, seria irresponsável tentar estabelecer qualquer relação destes com o resto de sua curta filmografia, mas o estilo do diretor é tão aparente que é possível imaginar de onde veio e pra onde vai.

Se a brincadeira do Holy Motors era um ator em vários papéis e situações, a de Annette é um cinema em vários palcos, onde os protagonistas travam uma guerra entre o drama e a comédia, com traços tragicômicos que passeiam pelo universo de referências que constituem o mundo manipulado pelo cineasta. Referências que não ficam na piscadinha, mas inerentemente ligadas à tudo que de tangível e intangível há na mise-en-scène.

Em Annette a manipulação tanto dessas referências, como dos elementos da linguagem, se torna uma força inegável, do bebê marionete à própria natureza da Arte. O quão forte tem de ser uma encenação para que sintamos qualquer coisa por uma coisa estranha como aquela boneca? Carax parece convencido desse poder, de cenas com um uso óbvio de fundos falsos - à la David Fincher, mas fazendo questão de evidenciá-los -, à metalinguística cena inicial que vai de um estúdio de gravação ao mundo, estabelecendo então este como palco. Sequência que, claro, se assemelha à balaca da dança do engarrafamento, que além de seu suposto virtuosismo (diferente do resto do filme, a saturação estourada e falta de identificação dos atores) não diz absolutamente nada.

Se em La La Land a manipulação é velada e destinada àqueles que desconhecem o Cinema, Annette é um filme que a todo momento deixa claro sua natureza e, mesmo assim, consegue manipular o que sentimos.

Retirando a comunicação de musical, é uma história até bem simples: um casal de artistas que, após terem uma filha, passam a ter problemas no relacionamento. Nisso, Carax se apropria dos atores e de suas reputações, Adam Driver e seu passado em História de Um Casamento, Marion Cotillard e sua La Vie En Rose sendo os exemplos mais visíveis. Como aponta o crítico Chico Dumar, Driver (se esta crítica fosse um vídeo do YouTube estabeleceria uma relação entre o sobrenome do ator e o filme do Gosling) é o mais feio dos atores, mas terrivelmente belo, portanto o próprio Deus Grego, ao passo que Cotillard traz a dramaticidade que apresentou em A Imigrante com a natureza espectral até mesmo de um A Origem.

Com tipos tão fortes, com profissões contrastantes, a relação só poderia ser de extremos. De um sexo passional à catástrofe em meio à uma tempestade em alto mar - dramatizada como em uma peça de teatro com maquetes de ondas. É possível voltar até George Méliès na praticidade dos efeitos, à uma inversão de L’Atalante em como o afogamento gera apenas dor, à interpolação artística expansiva e que beira o fantasioso de Sapatinhos Vermelhos, à Lynch e o visual monstro do pântano que ela assume logo depois.

E Carax consegue manusear essas referências visuais e conceituais de maneira que nunca soam baratas. Há uma sensação auto-cômica em tudo, sejam os diálogos cantados (poucos são realmente pensados como canções), seja o absurdo de tudo. Mas, a todo momento, o diretor contrapõe a comédia com o melodrama mais impactante do ano, de emoções reais e extremos intensos. A câmera se faz presente nesses momentos, mexendo o suficiente para percebermos que está ali quando Driver afoga o amigo, se aproximando e se distanciando do casal quando juntos, passeando curiosa pela figura dicotômica de Driver, sensualizando e vulnerabilizando o corpo de Cotillard.

Embora esse embate - tanto da comédia e do drama como do casal - por si só seja capaz de produzir respostas complexas, o nome do filme é Annette, e não Henry e Ann. Por isso, seus melhores momentos são justamente aqueles envolvendo a filha, desde os mais simples onde seu olhar toma vida e, portanto, dor acima da estranheza de seu corpo, até a magia fabricada em torno de suas apresentações. Um talento divino, que confirma a espectralidade da mãe como além da assombração ao pai, mas que logo volta a ser manipulada como forma de gerar mais e mais comoção.

No caminho, Carax constrói não bem críticas, mas constatações sobre o mundo digital (nisso também se assemelha a La La Land), de manipulação constante a qual somos submetidos, mas é na cena final, onde a menina vira menina, que ele sempre quis chegar. Em meio à comédia do absurdo, ao melodrama, há a tragédia de uma menina que toma controle das próprias ações ao renegar o pai. Este que o plano holandês e as lentes anamórficas entregam: não há mais o jogo de beleza e feiura, há apenas o onde aquela vida egocentrista o levou. Sua dor não é menos real por não ser altruísta, e o efeito não se faz menos desolador. Não há o cinismo de “ambos atingiram os seus sonhos à custos do amor”, com um olhar que, por mais que potente, indique uma felicidade profissional proposta pela fama, mas sim a verdade de que esta mesma fama apenas corrompe. Enfim, a tragédia do espetáculo.

E novamente comparo este ao único outro filme que assisti de Carax. Se Holy Motors parecia gerar um afastamento por sua estranheza (algo que não necessariamente é ruim), Annette conquista por ela. Seu charme está na novidade, que por si só gera mais um jogo de manipulações, nos convidando a um stand up, mas nos apresentando uma ópera onde a única resposta emocional possível é o sofrimento.

8.5

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