Crítica | Encanto

Aventura de fantasia na Colômbia transforma mágica e música em questionamento sobre nosso papel no mundo.

A Disney tem criado nos últimos anos muita expectativa em cima dos seus lançamentos, desde que “Frozen” (2013) resgatou a moral do estúdio com o público e a crítica as animações da empresa variaram em qualidade, mas não em originalidade, pois parece que nessa década o investimento em história novas e com boas reflexões foi prioridade entre as animações. “Encanto” é o novo capítulo dessa trajetória, um filme sobre uma família mágica ambientado numa pequena comunidade na Colômbia (quem diria que a Disney adaptaria “Cem Anos de Solidão”), ao contrário de diversas narrativas do cinema a protagonista Mirabel é a única que não possui nenhum dom mágico e justamente por isso procura encontrar seu papel na fantástica família Madrigal, que coordenada pela matriarca Abuela Alma usa seus poderes especiais para ajudar toda sua comunidade. Dirigido pela mesma equipe por trás de “Enrolados” e “Zootopia” e com história e trilha assinada por Lin-Manuel Miranda, que também fez Moana, “Encanto” tem uma construção visual impressionante pelas cores vivas e a cada vez mais avançada técnica de animação usada pelo estúdio, além disso se destaca a estrutura do roteiro que mesmo com alguns problemas é bastante competente em usar uma estrutura incomum para o gênero infantil que potencializa a tese central da história. Com bons personagens, boas piadas e muitas mas muitas cores, é um filme fácil de gostar e se divertir, por mais que não chegue no nível mais alto que a Disney pode oferecer é sólido o suficiente para uma boa experiência.

A família Madrigal foi abençoada com mágica, no duro momento em que o avô de Mirabel (Stephanie Beatriz) foi assassinado, um milagre deu aos seus descendentes uma casa mágica e poderes individuais especiais como super-força, a habilidade de curar qualquer pessoa com comida ou controlar o clima. A avó Alma (María Cecilia Botero) organiza a vida de todos em torno da missão de usar sua magia para ajudar as pessoas na sua volta, fazendo todos se responsabilizarem pela comunidade onde vivem e se colocarem a seu serviço. Quando chega o momento de Mirabel finalmente ganhar seu dom algo dá errado na magia e a menina se torna a única pessoa da família sem uma super habilidade, a fazendo ficar insegura sobre seu papel perante seus parentes, após perceber que sua casa corre risco de desaparecer, a protagonista passa a investigar as causas possíveis e quando entra uma profecia do desapareciddo tio Bruno (John Leguizamo) reflete se ela pode ser a culpada pela magia estar desaparecendo. A narrativa do filme é uma inversão do formato clássico da Disney, ainda bastante enraizada estrutura hollywoodiana, o que o roteiro de “Encanto” faz é colocar sua protagonista, Mirabel, como antagonista perante o mundo em que vive, normalmente a personagem principal do estúdio tem o dever de descobrir seu papel onde está, esse dilema costuma ser evidenciado na música chamada “I want song”, uma canção no primeiro ato em que somos expostos aos desejos essa personagem (o exemplo classíco aqui é “Belle (reprise) de “A Bela e a Fera”). No primeiro ato Mirabel canta uma música expositiva, “Waiting on a Miracle”, a diferença é que a música é sobre as necessidades (“Tudo que preciso é mudar / tudo que preciso é uma chance) da personagem e não sobre os desejos, essas motivações apresentadas no primeiro ato entram em confronto com os desejos da avó e das irmãs de Mirabel no segundo ato fazendo a família evoluir no terceiro ato. Mirabel cumpre a função narrativa de uma antagonista perante sua família.

Entre os muitos filmes da Disney ambientados em países que não os Estados Unidos, “Encanto” é o que mais faz questão de mostrar onde está se passando, a bandeira e as cores da Colômbia aparecem em muitas cenas, além disso há a incorporação de elementos culturais do país como o popular cantor Sebastian Yatra cantando o lindo tema “Dos Oruguitas” no clímax da película, Carlos Vives, outro músico importante colombiano cantando “Colombia, Mi Encanto” e a super estrela do país Maluma interpretando um dos personagens. A latente comparação com a mais famosa obra do escritor vencedor do Nobel de literatura Gabriel García Marquez é bastante presente quando a história apresenta uma guerra civil como gerador do problema central do filme e há alguns paralelos que podem ser feitos entre Abuela Alma e Ursula, a visão melancólica que se tem da magia que cerca as famílias aparece de maneiras diferentes, mas está presente no olhar de Mirabel ao longo dos 100 minutos de filme. Claro, ainda é um filme da Disney, mesmo a melancolia é colorida e musical, cada personagem tem uma identidade visual única, as escolhas de figurinos combinam com as personalidades e os detalhes no rosto e nas roupas de cada um revela os problemas que estão escondendo do mundo com delicadeza, como as olheiras discretas no rosto da tia Pepa. Aliás, muita coisa não é dita em “Encanto” mas tudo é mostrado, Pepa, que pode fazer chover ou nevar se estiver nervosa ou ansiosa, passa toda história tentando controlar seus sentimentos para não estragar a perfeição do mundo em que vive. Isso está presente pois a tese central do filme é como a imposição em sermos perfeitos naquilo que fazemos é prejudicial e nos faz apenas mais inseguros, ao contrário do resto de sua família, Mirabel não pode ser definida por uma simples habilidade e isso a faz a única capaz de mostrar para os Madrigal como aliviar a carga emocional causada por sempre tentarem ser divinos, onde a irmã da protagonista Isabela é uma metáfora, sempre descrita como perfeita, a personagem passa o filme todo sendo agressiva e na sua música entedemos que o motivo tem a ver com a ansiedade de manter essa imagem.

“Encanto” não é um filme perfeito, talvez ele deixe a desejar no elemento épico que os filmes da Disney costumam carregar, o substituindo por uma história mais subjetiva com uma mensagem importante. No primeiro ato, Mirabel acredita ser a única pessoa de sua família insegura e ansiosa sobre seu papel no mundo, ao longo da trama ela descobre que todos passam por isso e demonstram seus problemas de diversas maneiras e no fim das contas ela é a mais capaz de lidar com a frustração que o mundo dos Madrigal impõe a quem o habita. Uma tese importante sobre empatia e sobre auto cuidado, muito necessária no mundo tomado por coachs e livros de auto-ajuda tentando nos ensinar a sermos melhores que todo mundo a qualquer custo, Mirabel Madrigal é a oposição a isso. Mais uma vez, a Disney demarca que seu objetivo de produzir “para toda família” significa: divertido e com mensagens relevantes para todas gerações, mas com suavidade e inteligência ao apresentar suas teses. Talvez não haja potência suficiente para entrar no seleto grupo de grandes clássicos produzidos pelo estúdio, mas acho que sempre se olhará com carinho para a beleza temática e estética apreesentadas, para as músicas leves e divertidas e para seus carismáticos personagens, por isso “Encanto” me encantou e deve ser assistido.

7,5

Anterior
Anterior

Crítica | Annette - O La La Land que deu certo

Próximo
Próximo

Crítica | Casa Gucci