Crítica | Amor à Tarde
cenas de uma quase infidelidade
Em obra prima, Rohmer faz um de seus filmes mais visionários
Não tinha como Rohmer saber que Bergman e Kubrick fariam filmes que parecem mais um prelúdio combinado de Amor à Tarde (1972) do que uma continuação lógica no cânone Hitchcock / Antonioni. Mesmo tendo sido lançado antes de Cenas de um Casamento (1974) e De Olhos Bem Fechados (1999), o filme parece uma resposta às fugas protagonizadas pelos protagonistas desses dois, uma antítese que completa da melhor forma possível sua série de contos morais.
E não que Rohmer seja um fã da instituição casamento (apesar de que é bem mais romântico fiel do que sua reputação sugere), mas filmes como esse e Minha Noite com Ela mais flertam do que concretizam, mais teorizam do que praticam a tal infidelidade que, na cabeça complicada de seus protagonistas homens, de nada afetaria de verdade seus relacionamentos que não a dimensão moral presente entre dois seres e um contrato de monogamia.
Aqui, especificamente, ele começa com Hitchock: o cara passa as tardes num café observando mulheres e imaginando como são, idealizando encontros e abastecendo seu ego com a própria imaginação - o brilhante Na Cidade de Sylvia, de 2007, é o filme todo assim. Ali, Rohmer cria uma dialética excepcional entre a narração do Frédéric, entre o cansado e o fascinado, e suas visões pela janela: a câmera fazendo pans de um lado pro outro enquanto ele ressignifica as imagens das mulheres que passam. Cinema no seu estado mais puro.
Difícil até de apontar qual o filme mais Hitchockiano do Rohmer entre esse e A Mulher do Aviador, mas se aquele trabalha mais em uma sugestão final que ressignifica tudo, esse parte de um ponto mais direto, mesmo que fuja bastante dele depois.
A partir da segunda metade, ele acaba enveredando pra Antonioni (especialmente A Noite), mesmo que tenha uma preocupação muito maior nas pessoas que na atmosfera - é o Rohmer, afinal de contas. Dos nove filmes que vi dele (até agora), esse é o menos lateral: o escritório é visto como um corredor imaginário, estreito; o apartamento, o provador, as lojas de roupas, todos os cenários são apertados, como que empurrando os personagens pro fundo da imagem e pra cima uns dos outros. Diferente de outros dele, a natureza meio que nem importa tanto, somos sempre sufocados para junto das vontades e desejos dos personagens enquanto a urbanização ao redor oprime e espreme.
Assim, os pequenos gestos que o Rohmer tanto gosta ganham peso ainda maior. Os beijos no canto de boca, os olhares de cansaço, os toques inevitáveis que duram mais tempo do que deviam. Se em algo como O Raio Verde a desolação vem da solidão, aqui vem justamente do excesso de contato, de uma prisão moral que impede o homem de ser Homem, e transforma a mulher em Mulher, um ser superior em todos os sentidos e que se torna idealizado justamente quando inatingível.
Por isso os minutos finais são dos melhores da filmografia dele, uma recusa aos próprios impulsos que acaba em um momento de tanto amor que chega a doer - nos personagens e em nós. Alguns teorizam sobre aquele pan pra janela, a câmera voltando a procurar algo, mas embora possam existir infinitas interpretações (e umas duas mais concretas), pra mim é só um momento que justifica que poucos diretores fazem mais Cinema que Éric Rohmer.
Para quem dizia que todo filme é um documento de sua época, os melhores do cara eram bem atemporais. Podiam até captar a sensação de contemporaneidade com as especificidades francesas da época, mas eram em suma sobre as relações humanas que, como esses filmes mostram, não mudaram tanto.