Crítica | Colômbia Era Nossa
O verso de Caetano Veloso se refere à morte de Carlos Marighella, um dos mais importantes revolucionários brasileiros, que lutou por seus ideais em oposição à diversos governos no Brasil e por isso é símbolo até hoje para aqueles lutam por um mundo melhor. Em 1969, Marighella foi assassinado na cidade de São Paulo pelo governo ditatorial brasileiro, encabeçado por militares e financiado pelos EUA, o período da ditadura brasileira teve como papel garantir que a esquerda não crescesse no país e garantiu que as potências do norte global nos explorassem. Processo semelhante acontecia em diversos países da América Latina. Na Colômbia, nos mesmos anos 1960, o governo violentamente expulsava centenas de milhares de famílias das suas terras a mando da agenda imperialista norteamericana criando uma grande concentração de terras e marginalizando parte da população. Nesse contexto que as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) surgem como uma alternativa armada a esquerda do país, inspirados pelas ideias da Revolução Cubana de 1959, as FARC também surgem como parte de um contexto latinoamericano em que vários grupos comunistas escolhem a luta armada ao invés da disputa partidária.
Foram 53 anos de luta armada, em que os revolucionários guerrilheiros combateram o Estado Colombiano, os narcotraficantes e as milícias paramilitares (os limites entre esses grupos são bastante complexos e muitas vezes uma coisa não exclui a outra), mas depois de algumas tentativas fracassadas, o presidente Juan Manuel Santos anunciou conjutamente com líderes das FARC os Acordos de Havana, que previam a entrega de 100% das armas dos guerrilheiros em troca de anistias, auxílios e a possibilidade da organização se tornar um partido político legalizado no país, os acordos previam também a realização de um plebiscito para que a população expressasse sua opinião sobre os acordos de paz. Apesar do Nobel da Paz laureado a Santos por esse processo, os Acordos de Paz de Havana são dificilmente classificáveis como bem sucedidos, o próprio plebiscito de 2016 foi contrário a sua realização, com uma margem bastante apertada, é verdade, e a vontade política do governo de centro-direita em continuar com a pacificação agravou as rupturas instaladas na sociedade colombiana. O filme “Colômbia Era Nossa” é um duro retrato do fim da guerra e o pós-guerra entre FARC e Estado Colombiano.
O documentário é construído ao redor da paz, num primeiro momento, mostrando amplamente o que isso significa para os guerrilheiros das FARC, o filme abre com uma forte cena sobre a relação de um dos persongens com seu fuzil, explicando como ele sente a arma na vida dele, a entrega das armas foi o marco mais importnte do processo entre as duas partes. Além da tentativa de delimitção do que é paz, o filme acaba mostrando o que a guerra significa para eles, especialmente na perspectiva de Ernesto. O protagonista do filme é uma figura excepcional, um personagem tão bom que poderia ter sido escrito, dirigente político do grupo é um socialista convicto e forte propagador da transição dos revolucionários para a política institucional e a maior parte do filme acompanha a visão dele sobre o período. Curiosamente os outros dois personagens que mais aparecem são opositores radicais dos comunistas, Maria Fernanda Cabal, líder da extrema-direita e líder política colombiana vemos ela atuando na câmara de representantes (câmara baixa) contra a aprovação da paz, atualmente ocupa o cargo de Senadora da República, eleita pelo Partido Centro Democrático, mesmo partido do atual presidente Ivan Duke que pautou a oposição ao acordo com as FARC na sua eleição. Em uma cena marcante, Cabral lidera uma manifestação frequentada majoritariamente por cidadãos brancos, velhos, trajando camisetas da seleção colombiana de futebol e gritando palavras de ordem como “comunismo não”.
O terceiro personagem é uma das figuras mais asquerosas que vi na minha vida, de maneira que é impossível, para mim, buscar alguma impessoalidade para falar desse entrevistado. Benjamin é orgulhoso filho da aristocracia espanhola que comandou a Colômbia em séculos passados, ele ostenta um discurso que ultrapassa até o neoliberalismo, sendo (implicitamente) um defensor da volta das monarquias burguesas. Os diretores escolhem retratá-lo na sua mansão de cercado de cores frias, em oposição à floresta viva que Ernesto aparece na maior parte do filme, também usa música clássica bem alta como trilha sonora nessas cenas contrastando os sons da selva e depois da cidade dos militantes, indicado um distanciamento entre Benjamin e o mundo real. A câmera também explora a relação que ele tem com os empregados na casa, ele tem orgulho de pertencer a elite, qual ele acredita estar acabando e cita passagens bíblicas para explicar porque isso significa a condenação do país. Uma das últimas cenas do filme mostra esse homem em uma tourada, prática que, infelizmente, ainda é legal na Colômbia, o prazer que sente em ver e descrever o que ele chama de “dominação da natureza”. Vendo a cena brutal não pude deixar de fazer uma relação entre o touro e a própria esquerda latina sendo, mais uma vez, levada a aceitar conciliar com as elites e o Estado Liberal em troca de anistias e promessas vazias de novas possibilidades. A cada “Olê” gritado por aquele resto de aristocrata eu via as FARC abrindo mão de suas armas e os camaradas colombianos sendo perseguidos e assassinados por não terem mais como se defender.
Os diretores finlandeses (que moraram parte da sua vida na Colômbia) Jenni Kivistö e Jussi Rastas, especializado em produção audiovisual em zonas de conflito, planejavam fazer um filme sobre as negociações e o estabelecimento da paz no país latino, mas conforme a produção foi avançando se deram conta que os Acordos de Havana expuseram fragmentações importantes entre os colombianos e nos faz perceber que os problemas no país eram bem mais profundos que a existência das FARC. Duas cenas, para mim, são essenciais para a representação dessa tese, a primeira mostra um professor que se apresenta como “nem direita nem de esquerda” discursando na rua, explicando para grupos de pessoas que apenas 40 famílas governaram o país em toda sua história, mostrando através de um gráfico os obscenos graus de parentescos entre políticos do país por muitas gerações. A segunda é uma reunião da Força Alternativa Revolucionária do Comum (sim, o nome do partido fundado pela FARC é: FARC), realizada na periferia de aluma cidade em que a população local se mostra incrédula com o giro à institucionalidade dos guerrilheiros e argumentam que agora eles são “so mais políticos indo pedir voto” e que trocaram os uniformes da guerrilha por uniformes de político.
Por que as pessoas deveriam acreditar em algo diferente? O neoliberalismo vem há anos fazendo uma política que visa destruir a esperança da população, aumentando a desigualdade, a violência estatal e buscando destruir sistematicamente as alternativas de luta, a Colômbia é um dos países que mais amarga a total subjugação do seu governo pelos interesses dos Estados Unidos. Essa relação é mostrada na velocidade em que o governo destrói todas plantações de coca (única fonte de renda de parte da população do campo) nos territórios que antes eram controlados pelas FARC com aval de um militar norteamericano que parabeniza o vice-presidente pela inciativa sem oferecer qualquer alternativa financeira para esses trabalhadores. O assassinato de ex-guerrilheiros fez surgir dissdências das FARC espalhadas pelo país, liderada inclusive por um dos poucos deputados que o partido elegeu nas eleições de 2018, mostrando que a situação ainda não está perto do fim. Ernesto afirma que não voltará a pegar em armas, apesar dos reveses sofridos pelo novo partido e termino com as palavras dele