Cena em Detalhe | Bastardos Inglórios e Obras Primas
A que genero “bastardos inglórios” pertence?
Seria errado categoriza-lo como um filme de suspense, pois, apesar de se utilizar dele para criar tensão, nunca se atém a contar uma história de mistério ou investigação. Comédia também não seria a alcunha correta, pois, apesar de conter momentos hilários e revisitar o humor negro de “Dr. Fantástico”, nunca pretere o próprio peso em troca de risadas. Seria errado também classificá-lo como um filme de drama, pois assim como em todas as obras anteriores (e posteriores) de seu idealizador, o fator emoção é quase inexistente E, apesar de o gênero filme de guerra encaixar mais com sua temática por se passar justamente em meio à Segunda Guerra Mundial, não parece certo dizer que é um filme de guerra.
A verdade é que, assim como todos os filmes de Quentin Tarantino, “Bastardos Inglórios” é um filme de… Quentin Tarantino, que empresta de todos estes gêneros acima, e uns tantos outros, para pincelar mais uma carta de amor ao cinema deste homem que ama tanto a sétima arte que dedicou toda a sua filmografia à homenageá-la e, no processo, acabou se tornando um de seus contribuintes mais generosos.
Apresentado em maio de 2009, em Cannes, e lançado em 20 de agosto nos Estados Unidos (por aqui chegaria apenas no dia 9 de outubro), “Bastardos Inglórios” foi como um bem vindo retorno à forma após o decepcionante “À Prova de Morte”, o mais esquecido e menos aclamado filme de sua carreira que, parte de um projeto duplo - nomeado “Grindhouse” - entre Tarantino e Robert Rodriguez, falhou miseravelmente nas bilheterias. Tarantino então percebeu que estava na hora de trazer à vida aquela que considerava sua melhor história, a qual passou mais de dez anos escrevendo, re-escrevendo, editando e repensando, pois, de acordo com o próprio, não conseguia pensar em um final adequado.
Logo, é inevitável analisar com divertimento que o fim de “Bastardos Inglórios” seja tão… simples. Porém, ao rever a carreira do diretor, por mais que suas estruturas narrativas sejam pouco ou nada convencionais, há também pouca ou nenhuma vontade do cineasta em fazer de seus filmes obras com o final aberto, quase sempre amarrando as pontas o suficiente para que passemos mais tempo analisando o miolo do que a última mordida destas receitas malucas que ele inventa. Raramente, a última impressão é a que fica quando se fala no cinema de Tarantino, o que torna ainda mais curioso que ele tenha lutado tanto para chegar ao final que chegou em “Bastardos”.
Nele, e aqui começam os spoilers (caso não tenha assistido, corra!), Aldo “O Apache” (Pitt) e Smithson “O Pequeno” (Novak) olham com o mesmo divertimento sádico que permeia grande parte da narrativa para a possível obra prima do personagem interpretado por Brad Pitt: a marca da suástica, feita com um facão, na testa do até então implacável Coronel Hans Landa. E então, é inevitável não perceber a semelhança entre a obsessão do cineasta em fazer desta sua Magnum Opus com o comentário de Smithson, o que justifica plenamente este pequeno, mas gratificante momento, servir como o final da obra mais grandiosa de Tarantino até então.
É um final que se justifica, também, por conta de Tarantino não criar, ao longo do filme, personagens os quais optemos por torcer. Em “Cães de Aluguel”, a honra do senhores White e Orange mesmo como bandidos é admirável; Em “Pulp Fiction”, Vincent, Jules e Butch, por mais que mercenários, despertam nossa empatia por seu estilo; Em “Kill Bill”, Uma Thurman é uma verdadeira heroína em busca de justiça; Em “Django Livre”, causa e personagem fazem de Django também um herói em busca de paz. E, por mais que não seja difícil simpatizar com pessoas que tenham como objetivo principal aniquilar nazistas, há pouca ou nenhuma intenção de Tarantino em fazer dos Bastardos, ou de Shosanna, criaturas gostáveis e empáticas, o que inviabiliza um final genuinamente feliz e positivo. É por isso que a dama do vestido vermelho tem um final tão trágico como sua própria existência e Aldo e Smithson sobrevivem menos como personagens e mais como o que restou de sua nobre causa.
Observem, além dos valores conceituais envolvidos nesta última cena, a linguagem que Tarantino construiu ao longo da narrativa para dar ressonância à tomada final. Landa, um personagem genial, interpretado com excelência por Christoph Waltz, frequentemente fora retratado como uma figura de grandeza única ao longo da projeção, com tomadas que enfatizam como, apesar da baixa estatura, o mesmo figura como a maior ameaça em um filme onde os maiores nomes do Nazismo alemão também estão presentes. Repare em como a posição e movimento da câmera logo na primeira cena, onde o mesmo percebe que um membro da família havia escapado com vida e fugia por debaixo do assoalho, o tornam gigantesco de cima para baixo; ou como Shosanna tem de olhar para cima em seu reencontro com ele; ou como o mesmo assassina a personagem de Diane Kruger a sufocando com o peso de seu corpo sobre o dela. Este final se torna então simétrico de forma contrária, ao mostrar que o objetivo final, de acabar com a guerra, fora atingido ao colocar esta figura acostumada a estar por cima, por baixo, encurralado-o como um rato que, comparação dada aos judeus, ele se orgulhava de caçar.
Assim, ao celebrar seus atos de justiça - por mais bárbaros que sejam - o final de “Bastardos Inglórios” é o ideal para uma história sem emoção que apresenta vilões que amamos odiar, mas heróis que, de tão pouco relacionáveis e empáticos, mal lembramos ou ligamos para o que lhes foi feito após o fim da produção. E por mais que, como filme, ainda não desbanque “Pulp Fiction” como o quentynssential de seu idealizador, pode sim ser chamado de obra prima, justamente por unir todas as alegorias que se propõe com tamanha maestria capaz apenas para um dos maiores cineastas de todos os tempos.