Filmes Para Toda Hora | Trilogia Before (Antes do Nascer do Sol, Antes do Entardecer, Antes da Meia-noite)
Em 2020, depois de 5 anos, revi a trilogia before.
Não há um lapso temporal tão grande quanto os próprios filmes possuem, mas algo me chamou a atenção sobre a maneira que interpretei esse filme depois de quase meia década. Há alguma coisa sobre admiração que faz você pegar o melhor que a vida lhe mostra sobre algo ou alguém e tentar associar a você (um pouco como o clássico clichê “gentileza gera gentileza”). Inevitavelmente, a estrutura da trilogia Before e a amostra (sem nenhuma intenção doutrinária) de como uma conversa em sua imagem mais vulnerável e espontânea deveria ser - e por conseguinte de como se constroem laços - é algo tão verdadeiro e cru que, depois de assistirmos Antes do Nascer do Sol, buscamos - ou imaginamos que um dia possamos - replicar aquilo por simples admiração ao que vemos.
São filmes assim que afastam, ou melhor, exoneram o nosso lado mais técnico e imparcial quando avaliando um filme e destacam o nosso lado mais apaixonado e humano possível.
Afirmo que as pessoas mais inspiradas pelos diálogos tão cotidianos, mas ao mesmo tempo tão especiais criados por Richard Linklater, Ethan Hawke e Julie Delpy, são aquelas que já viveram algo como Jesse e Céline e sua primeira madrugada. Não há dúvidas que quanto mais vivência, mais significados podem ser atribuídos a essa história de uma noite que parece infinita.
Por isso meu objetivo aqui se torna não só dissecar a funcionalidade da relação dos dois, mas também abordar a conexão “pessoas e pessoas”, “filmes e pessoas” e “pessoas e momentos”, que foram, no meu ponto de vista, os 3 pontos focais de Linklater ao criar a trilogia Before.
Logo, a primeira coisa a ser abordada é como o filme se conecta com quem assistes, antes de entrar no mérito mais particular do texto - e explorar meu lado mais romântico e melodramático, prevendo que, ao final de tudo, provavelmente vou acabar bagunçando essa linha de raciocínio.
Richard Linklater é propriamente um gênio quando se trata de transpor a simplicidade e a beleza da vida para uma tela de cinema. Faz isso não só através de sua escrita extremamente sensitiva (aqui dividindo o processo com Hawke e Delpy, a fim de criar uma história não aprisionada a cabeça de um homem, e sim perpassada pelo aspecto feminino dentro de uma relação), mas também através de sua direção minimalista e minuciosa. Viena, Paris, e uma linda cidade na Península de Peloponeso, todas elas filmadas com um olhar contido. Para destacarmos sobre as principais características do filme, sendo elas a linguagem e os diálogos, é importante começarmos notando como a beleza dos visuais que dão vida a essa história ficam em segundo plano, talvez por, até o final do filme, não carregarem algo que se relacione conosco além de mera beleza estética. Linklater nos mostra isso na prática. Exemplificando:
Dentro de um trem, durante um monólogo engraçado - e até coerente - sobre imaginar aquela situação como uma máquina do tempo, Céline é convencida a explorar a cidade de Viena com Jesse, um total estranho. A partir daí, durante os 101 minutos restantes, somos tomados de um tamanho fascínio por aqueles dois personagens: por seus devaneios, crenças e descrenças, suas ideias e desejos mais abstratos - mas ao mesmo tempo tão palpáveis - que esquecemos estar, como eles, em uma das cidades mais bonitas da Europa. Isso até o momento em que Linklater, antes dos créditos, nos mostra fotografias vivas de todos os lugares onde eles estiveram durante o filme, para que então não só os contemplemos, mas para atribuirmos verdadeiro significado e “beleza” a eles. Não é como se as paisagens não estivessem lá, elas só eram discretamente auxiliares.
Isso demonstra um claro padrão na expressividade romântica do diretor e de seus co-escritores. Às vezes a vida não se trata da urgência de mostrar as coisas, mas sim de incorporá-las ao que realmente possui significado. Jesse e Céline não correm. Em nenhum momento. Eles caminham durante todo seu tempo juntos - mesmo que, nos dois primeiros filmes, tivessem seu tempo contado. E quando fazem isso, Linklater faz questão de filmá-los, dos pés a cabeça, lentamente, como se estivesse nos mostrando seus dois personagens por completo. Assim, se expondo, Antes do Nascer do Sol estabelece essa conexão quase subconscientemente, mas muito forte.
Isso inevitavelmente diz muito sobre o amor e a relação pessoa-pessoa. Relação que me leva a um dos meus filmes favoritos de todos os tempos. No momento em que Linklater subverte a estrutura do filme, fazendo com que os diálogos criem e dêem vida a narrativa, e não apenas sejam utilizados como ferramentas para fazer a roda girar, pode-se entender o porquê de amarmos tanto essa trilogia.
Em suma, é dizer que, diretamente por essa subversão, o fim importa (logicamente) mas os meios importam mais.
“I guess when you're young, you just believe there'll be many people with whom you'll connect with. Later in life, you realize it only happens a few times.” Celine, Before Sunset.
Isso paira inevitavelmente sobre a questão do que achamos ser se conectar de fato com alguém. Importa saber como as coisas acabam, e se acabam? Obviamente. Mas tudo o que representa se ligar a alguém - sentir, amar, desejar, como Céline cita no segundo filme - não acontece com tanta frequência quanto pensamos. Por isso, se torna quase inerente não pensar sobre o final, roubando espaço da beleza e da entrega necessária aos meios, e aos momentos quando realmente sentimos algum tipo de reação química no nosso corpo - faíscas, euforia, borboletas.
Antes jovens, entregues aos seus sonhos e a pequenos momentos. Nove anos depois, mais maduros e com claras e visíveis bagagens. Aqui Linklater em sua abordagem, seus ângulos, e sua edição – tão efetiva que por vezes cria uma sensação de eternos planos sequências – dá espaço à conexão real entre os dois. Tal conexão que viria a fazer Jesse perder aquele avião enquanto sorria vendo Céline dançar enquanto a tela esmaecia.
Há magoas e há ressentimentos. Há problemas reais de, agora, duas pessoas reais. Pessoas com ambições concretas, mas também ainda empolgadas com suas vidas. Aquela liberdade cômica entre eles ainda existe, porem mais contida em certas frustrações que a vida lhes proporcionou. A diferença dessa vez é que o roteiro de Before Sunset dá espaço ao que, ao meu ver, significa verdadeiramente se conectar com alguém.
Gradativamente Jesse e Céline declaram suas frustrações sobre suas próprias vidas. A cena dentro do carro onde ambos conjuram lamentações um para o outro sobre como as coisas poderiam ter sido é o ponto de virada do segundo ato, onde, ali, se mostraram verdadeiramente vulneráveis depois de dois filmes (ou 9 anos). Onde entenderam que se amar era viável por tocar uma das partes mais sensíveis e doloridas um do outro.
Toda a expressão corporal em um dos melhores momentos da carreira tanto de Ethan Hawke quanto de Julie Delpy demonstra o que é de fato se relacionar com alguém. Tais nuances de seus corpos me lembram que tenho de falar sobre o cultivo desse filme por seus pequenos e passageiros momentos, e como nós, espectadores, nos associamos a eles. Logo, sobre Before Midnight.
No desfecho da trilogia, vemos Jesse e Céline casados e com filhos. O rosto dele não da indício algum de que aceitaria algum topete como usou durante bom tempo. Já ela, um pouco desconfiada sobre sua aparência, se questiona se ele ainda desceria com ela daquele trem se aparentasse como aparenta hoje. Talvez tudo que represente se doar a uma pessoa, assim como o desgaste que as vezes isso gera, fique salientado em absolutamente tudo que ambos façam no 3º filme. Entre conversas sobre complicações de um casamento ou paternidade, existem muitas coisas sobre Before Midnight com que eu não posso me relacionar ou entender ainda, mas consigo ainda assim admirar.
Imagino eu que, como todo casal, Jesse e Céline chegaram a um ponto em que sustentam seu relacionamento se baseando em momentos e memórias. Suas conversas não são mais sobre coisas entusiasmantes como há 9 ou 18 anos atrás e, como uma história real que Richard Linklater se propôs a contar quase duas décadas atrás, o depois do felizes para sempre existe e nem sempre é bonito. A vida real não é e relacionamentos também não são sempre dessa maneira. Onde há muita compreensão também existe espaço para diversas amarguras. Os diálogos nesse terceiro filme cintilam entre indícios de que as coisas vão ficar bem e a possibilidade de uma separação - o que também seria um desfecho completamente realista pra uma história que tem a sinceridade como norte.
Isso me leva à importância de “momentos” pontuais na vida de uma pessoa e como a genialidade narrativa dos três escritores são mais do que os olhos podem ver.
Jesse, em uma última tentativa de sustentar um enorme e desgastado amor, fez o que provavelmente todo homem faria: algumas piadas, como se rir fosse consertar anos de sobrecarga de Céline. Mas mais importante que isso, Jesse começou seu último discurso, abordando uma máquina do tempo. Se foi a mesma que ele mencionou há 18 anos atrás, no primeiro filme, antes de embarcarem em toda essa história? Talvez.
Não acho que essa tal máquina do tempo tenha algum formato concreto, mas claramente se trata de um momento. Um breve momento. Após um arrastado silêncio entre os dois, Céline, usando a voz estereotipada de “mulher frágil” que sabemos – e que Jesse também sabe - que ela não é, pergunta sobre a tal máquina do tempo. Irremediavelmente aquele breve momento de total quietude evocou dois outros momentos em questão: o silêncio na cabine de música no primeiro filme e o silêncio enquanto subiam as escadas do apartamento dela no segundo. Nada precisava ser dito. Nada que eles não soubessem. Acredito que essa seja a máquina do tempo que Jesse se referiu 9 e 18 anos para trás, e talvez uma das poucas coisas com que eu, hoje, com 22 anos, possa me relacionar com Before Midnight, e ainda assim, particularmente a coisa mais importante pra mim dentro desses 3 filmes.
Relacionável porque “talvez” eu esteja escrevendo este texto pensando em alguém especial. Alguém que eu admiro, assim como Jesse admirou um dos livros que escreveu. Minha máquina do tempo naturalmente me leva pra certo momento, mais especificamente um olhar. É louco quando percebemos que essa máquina do tempo imaginária existe. Comigo acontece toda vez que fecho os olhos e encaro determinado par de olhos castanhos, mas na iminência de tornar esse texto mais pessoal do que deveria ser, paro por aqui.