Crítica | Corrida Sem Fim
ROTA PARA O NADA
Sem lugar e sem época, clássico de Monte Hellman é um retrato do não pertencimento
Assisti apenas dois filmes de Monte Hellman, ambos separados por 49 anos, mas que se complementam a ponto de que o fim de um poderia ser o início - ou pelo menos um prenúncio - do outro.
No fim de Corrida Sem Fim (por si só, um paradoxo), o filme é queimado, enquanto em Caminho Para o Nada, vemos a digitalização do Cinema nas mãos de um CD que expõe tudo, mas não explica nada. Os mesmos personagens habitam cada filme: se os irmãos daqui são apaixonados por carros, o diretor dali é pelo Cinema. Se um recusa uma narrativa tradicional, o outro a desintegra.
Se torna curioso, portanto, que cada filme seja um marco tão importante de sua respectiva época. Este, de 1971, certamente mais reconhecido que seu parente de 2010 (assistido por um estimado de 87 pessoas), praticamente ignorado pela grande maioria dos cinéfilos e lembrado apenas pontualmente em listas e recordações da década. O que não deixa de simbolizar também o seu papel como desbravador desse novo Cinema, agora digital e cada vez mais impessoal.
Porém, se as diferenças entre filme e digital são postas em cheque quando ambos os filmes são comparados, em seu centro está a naturalidade de Hellman em enquadrar suas cenas. Isolando personagens com sombras, os contrapondo em como são distribuídos profunda e horizontalmente em cada quadro, e filmando movimentos ensaiados que o permitem manter o controle mesmo quando o objetivo é justamente dar liberdade à esses movimentos, Hellman faz em Corrida Sem Fim um filme sobre a claustrofobia ambulante do início dos anos 70. Os Estados Unidos tinham ido à Lua, a guerra do Vietnã se aproximava do fim, a Rota 66 permitia uma viagem aparentemente infinita por cenários antes glorificados no Cinema, mas que agora pareciam inóspitos.
De certo modo, é um filme muito mais apavorante que Laranja Mecânica em como retrata uma sociedade decadente, mesmo que esta seja vista apenas pela periferia de seus personagens. Quase como um No Silêncio da Noite para o Vertigo de Taxi Driver, um filme barulhento com seus silêncios, que retrata momentos destinados a serem lembrados como passado e nunca apropriados para um presente válido. Quando Traviz Bickle chega em Nova York, não poderia ele ter feito algo tão banal quanto o mesmo passeio dos irmãos conhecidos apenas como mecânico e motorista?
Assim como o filme de Scorsese que, ao meu ver, é a matriz para o neo-noir, este é um retrato de solidão, combatida não com o fervor de um homem em busca de uma causa, mas por uma busca incessante por um tipo específico de ignorância. Apenas carros e rotas para o nada, permeadas por incertezas disfarçadas de alienação, uma sensação onipresente de não pertencimento em um mundo visto como borrão pelas janelas de carros sem rumo. Nada daquelas pessoas vai ficar em lugar nenhum se não traços de gasolina. Logo entrarão em órbita e serão devidamente apagados pelo todo. Em certo momento, pensei na teoria da relatividade, e como o tempo passa tão rápido lá fora, mas tão devagar ali dentro.