Crítica | Shrek
*Texto do colaborador João Pedro Portela.
O primeiro vencedor da categoria animação do Oscar não está na nossa cabeça por este feito, mas por ser uma animação totalmente diferente do que se havia visto até então.
Críticas às histórias idealizadas de princesas e com um humor de frases ambíguas e de duplo sentido que vão além da faixa etária livre na qual é classificada, Shrek Primeiro inaugura o que temos observados cada vez mais ao longo deste século XXI: desconstrução das narrativas comuns nas histórias de princesas que aguardam o príncipe encantado.
Shrek, o personagem, é claramente um anti-herói, faz o bem para si e para a tranquilidade do seu pântano. Não é um príncipe nobre e muito menos tem suas ações motivadas pela bondade. Ajudou o Burro não pelo interesse na amizade, mas para afastar cavaleiros do perímetro da sua casa; foi atrás da princesa Fiona para que as criaturas mágicas dos contos de fadas saíssem da sua propriedade; e entrega a princesa ao Lorde Farquaad ao pensar que a Fiona falava dele, quando na verdade ela desapreciava a sua forma de ogra devido a sua maldição.
O terrível ogro verde, que ao longo do filme se torna amável, é uma personagem diferenciada nas histórias de animação infantil. Ao invés de inicialmente ser apresentado como uma criatura bondosa, passar por um conflito que rompe sua bondade e depois retornar ao estado inicial, ele surge primeiramente como um personagem egoísta. Embora ao final do primeiro filme ele encontre o equilíbrio, até o último filme da sequência, Shrek demonstra atitudes egoístas o que acaba o humanizando como personagem.
Os criadores do primeiro filme, além de montarem um personagem mais próximo a natureza humana, não se contiveram em construir um humor ácido sobre os contos de fadas. Não houve pudor em desmontar a ideia romântica da princesa cujo conflito da narrativa é um sequestro, envenenamento ou cárcere numa torre pela bruxa do mal. O filme desbanca por completo o conflito da princesa ao fazer com que os vilões sejam seus pais que a trancam numa torre e sua maldição não é dormir ad eternum, mas é transformar-se em uma ogra.
O filme, ao apresentar a princesa, até tenta nos enganar em seu início com a história piegas de que um nobre cavaleiro escalaria a torre e daria o beijo que a despertaria – assim como quando Shrek chega na torre e a encontra deitada esperando o beijo do amor verdadeiro. Mas nada passa de uma sátira indireta sobre as histórias antigas de damas e cavaleiros da Disney. Sátiras diretas aos contos da Disney também são encontradas, por exemplo com a Branca de Neve que é carregada de um lado a outro pelos anões (pode se supor que não houve o beijo do Príncipe, já que ela ainda está adormecida).
O príncipe encantado do filme não é nem príncipe, nem encantando e nada mais irônico que substituir um cavalo branco ou fiel escudeiro por um burro tagarela.
O roteiro de Shrek até é previsível, mas por remeter a sua crítica, construindo seu humor ao ironizar as histórias de princesas e contos de fadas. Entretanto, não estamos agora falando de que o amor verdadeiro exista somente entre o príncipe encantado e a uma jovem linda princesa, história construída por décadas por estúdios tradicionais. Shrek é um filme que rompe e ridiculariza esta ideia para demonstrar uma diferente forma de amor para o público infantil.