Crítica | Os Incríveis

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Eu era uma criança a primeira vez que assisti a "Os Incríveis".

Fui ao cinema com meu pai e, imediatamente após sairmos da sessão, ele falou "vai ter continuação!". Eu perguntei o porquê de ele achar isso. "Não viu o final, chegou um vilão novo!". Era o que todos achavam, que teria um segundo filme e que seria sobre os Incríveis combatendo aquele vilão, algo me dizia que era apenas uma maneira legal de terminar a história.

Por 14 anos eu estava certo, infelizmente.

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Todos sabemos o que acontece: devido aos efeitos colaterais causados pelas ações de super heróis a opinião pública se vira contra eles, o que leva o governo a exigir que todos passem a viver sob suas identidades secretas. Anos depois, Bob (Beto) e Helen (Helena) Parr (Pêra) vivem uma vida comum, com três filhos que também tem de esconder seus poderes, sucumbindo à vida normal. Após ser demitido de seu emprego, Beto é convidado para realizar um trabalho como super herói em uma ilha remota e ao revisitar o local para frequentes atividades similares, ele retorna à sua vida dupla como Sr. Incrível. Helena descobre e vai atrás de Beto, com ambos descobrindo que, na verdade, era tudo uma armadilha para eliminar todos os supers pelo maluco vilão Síndrome. 

Obviamente, após rever o filme diversas vezes depois de crescido, comecei a reparar em coisas que crianças nunca poderiam. É difícil quantificar todos os temas e assuntos abordados no sexto filme (e sexta maravilha), da Pixar. Em sua forma mais simples é um misto de James Bond com Quarteto Fantástico recheado de ação e comédia. Em seus momentos mais profundos serve como uma análise de relações familiares, aceitação pessoal, fanatismo radical, crises existenciais, as mais complexas complicações sociológicas envolvendo o mito do super herói e a luta incansável entre o ordinário e o extraordinário. Isso tudo, disfarçado como diversão pura para a família.

Tudo está em perfeita sintonia, desde a sútil, mas efetiva construção de mundo ao desenvolvimento de cada um de seus personagens e sua gradativa evolução durante o longa.

Este talvez seja um dos roteiros mais bem elaborados da Pixar em relação a storytelling. É uma história com diversas facetas, que dá a devida atenção à cada um de seus elementos para que nada passe sem ser explorado. O prelúdio, que mostra os super heróis no auge de sua popularidade, proporciona algumas das cenas mais bem feitas da história relacionadas à como seria a vida em uma cidade real com a presença deles. A relação do Sr. Incrível com a Mulher Elástica é convincente desde sua primeira cena juntos e as primeiras aparições de Bochecha, além de hilárias, são um retrato do fanatismo que muitas pessoas realizam com celebridades desde que elas começaram a existir. 

Nos dias atuais, a vida da família é permeada pela exaustiva rotina, oferecendo uma análise realista e quase depressiva de como muitas pessoas desistem de seus sonhos para seguir uma vida comum. Você percebe a insatisfação e falta de vontade em Beto que, apesar de amar sua família, nunca conseguiu superar a saudade de seus dias de glória. O fato de Helena ser melhor resolvida com isso é também um retrato estereotipado da sociedade, que imprime que a mulher tem um papel pré determinado, dificilmente o questionando sobre qualquer coisa. As próprias crianças são alegorias para alguns dos maiores problemas das primeiras fases da vida. Flecha apronta na escola abusando de sua super velocidade, Violeta é uma menina tímida e fechada, algo que, além de combinar com seus super poderes, remete ao fato de ela ter de se esconder diariamente e Zezé é uma tentativa de mostrar como os pais nunca entendem completamente seus filhos, mesmo já tendo sido crianças antes - por isso e por outros motivos, ele me lembra o Stewie, de “Family Guy”.

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Quando Beto começa a trabalhar para Mirage, percebemos que o relacionamento com sua família melhora consideravelmente e são nesses momentos de transição que o trabalho do diretor, Brad Bird, é melhor visto. Ele entende o desenvolvimento do roteiro, de seus personagens e os aspectos técnicos acompanham de forma orgânica. "Os Incríveis" consegue passar a grandiosidade, monotonia, dúvida, medo e força de vontade necessária a cada novo desenrolar e, apesar de mostrar cenas de ação pesadas (tiros, explosões, mortes, tentativas de homicídio), nunca deixa de lado o tom cômico, quase satírico, que impede o filme de se tornar subversivo. 

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A atenção a detalhes aqui é incrível, com pequenas cenas revelando aspectos importantes de cada personagem. Quando Beto descobre a quantidade de super heróis já assassinados seu primeiro impulso é procurar sua mulher dentre os nomes listados. Quando acredita que sua família morreu, rapidamente é tomado pela raiva, mas seu coração é bom demais para machucar alguém de verdade. Ao final, quando Flecha termina propositalmente em segundo lugar em uma corrida na escola, além de ser uma cena hilária, apresenta uma maturidade crescente e vemos Violeta finalmente saindo de sua concha. Talvez a personagem que mais precisasse de um maior desenvolvimento fosse justamente Helena e, para isso, finalmente teremos a continuação. 

Outro ponto extremamente positivo é como o roteiro se entrelaça de forma natural. Edna Mode, a designer dos super heróis, além de ser uma das personagens mais divertidas de toda a Pixar, é um artifício inteligente para ligar Helena a Beto. E, é claro, descobrir que Bochecha era na verdade quem estava por trás da armação para atrair os super heróis, além de ser um plot twist excepcional, oferece um dos melhores diálogos do longa que termina com a genial frase "Afinal, eu era o seu maior fã.". 

O Síndrome, por sua vez, é um dos melhores vilões dos filmes de super herói, o gênero que mais necessita destes, mas que tem tanta escassez de exemplos positivos. Seu plano é maluco, mas tem fundamento, baseado na sua frustração com os heróis no passado, ele decide fazer com que todos tenham sua chance de virar um super, ao compartilhar de sua avançada tecnologia. Para isso, pretende destruir parte da cidade com uma de suas criações para então derrotá-la e ficar conhecido como o herói que sempre quis ser. É uma história de redenção, marcada por dores do passado que, em uma jogada de gênio, toma outro rumo bem pensado: a criação se vira contra o criador e vemos a família Pera, com a adição do sempre bem vindo Samuel L. Jackson como Gelado, participando de um dos combates em meio à uma cidade mais divertidos e empolgantes já feitos. 

Cada pequeno pedaço de "Os Incríveis" é feito com o mais profundo esmero. A história é relevante, os personagens são complexos e cheios de camadas, a ação é impactante e o humor é um dos mais eficazes do estúdio. Mas, além disso, é um filme que reúne as maiores paixões das crianças (super heróis e animação) sem deixar de lado alguns dos aspectos mais contemplativos da vida adulta. É um filme que mostra como sempre podemos fazer algo melhor com a nossa vida, ressalta a importância da família e dá maior profundidade a palavra super herói. 

No dia 28 de Junho, porque o Brasil recebe todos os filmes bons com atraso, milhares de pessoas, que hoje já podem entender todas as virtudes do primeiro filme, voltarão mais uma vez àquele universo maravilhoso de sua infância.

A melhor família de super heróis está de volta, não sei como aguentamos tanto tempo.

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