Crítica | Mapa de Sonhos Latino-americanos

Filme assistido durante a cobertura do Brasilia International Film Festival (BIFF) de 2020, disponibilizado online pela organização devido a pandemia do Covid-19.


Obriga-se o oprimido a fazer sua, uma memória fabricada pelo opressor: estranha, dissecada, estéril. Assim, ele se resignará a viver uma vida que não é sua, como se fosse a única possível.
— Eduardo Galeano
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A HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA REPRESENTADA COMO NUNCA ANTES.

O fotógrafo Martin Weber expande o seu trabalho fotográfico nos anos 1990, em que retratou pessoas por todo continente segurando lousas com seus sonhos, para o cinema em 2020 quando voltou para procurá-las. “Mapa de Sonhos Latino-americanos” é sobre isso: os útlimos 30 anos da América Latina.

Mas essa afirmação é incompleta, porque ao tratar das últimas décadas do continente o diretor documenta os nossos 500 anos de história colonizada. Isso porque os retratos que ele tirou são uma prova de que o nosso continente, por mais diverso que seja, é marcado por uma extrema pobreza, desigualdade e violência, seja ela vinda do Estado ou das organizações paralelas a ele como paramilitares, milícias ou o narcotráfico. A relação da mulher em Salvador que quer saber o que aconteceu com seus parentes durante a ditadura brasileira e a menina colombiana que sonha em ver os pais perseguidos pelo narcotráfico voltarem a sorrir, apesar de serem de países diferentes, idades diferentes, etnias diferentes e situações sociais diferentes é enorme, assim como entre àqueles que sonham em ter dinheiro na periferia carioca com à camponesa que queria ter uma casa grande no interior do Peru. Dessa forma ficam nítidas as marcas do autoritarismo e do subdesenvolvimento sustentados pelos Estados Unidos, mas através das nuances e das cicatrizes deixadas nas populações miseráveis do Brasil e de nossos irmãos. A abordagem do diretor se dá em Argentina, Peru, Nicarágua, Cuba, Brasil, Colombia, Guatemala e México, e passa pelos pontos em comum na história desses a partir das visões dos personagens e suas pessoas próximas.

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Quais são os sonhos de um povo? Daqueles que perderam seus familiares, vítimas de violência, pode ser ter eles de volta, responsabilizar os culpados, encontrar seus corpos. Para quem vive uma vida na miséria pode ser sair dela, educar os filhos, trocar de vida e o que mais?

O diretor nos mostra um engraxate cubano que sonhava em ser poeta, ele morreu meses antes da filmagem em Cuba e o depoimento de sua esposa é um dos melhores do filme, nos contando uma linda história de amor e convivência sobre o marido que apesar de sonhar com a poesia, nunca mostrou nenhum dos seus versos para ela, porque tinha vergonha de sua caligrafia. De poético temos o documentário em si, seus depoimentos, seus dilemas e suas composições.

Ao procurar a família brasileira que dizia que sonhava em ter dinheiro temos dois momentos marcantes, o morador da região que ajuda a equipe na busca falando sobre seus amigos e a passista de uma escola de samba local refletindo sobre os sonhos das pessoas e o papel do dinheiro na realidade periférica. Além da pobreza urbana, temos vários momentos para ver como esse processo funciona nos campos: um personagem na Colômbia conta a história de como os paramilitares invadiram a casa de uma mulher e mataram todas suas galinhas, esse relato termina com a frase “acho que o narcotraficantes são até piores que os guerrilheiros”, que simboliza a situação tensa em que se encontram. Do lado das guerrilhas, tem personagens zapatistas, falando sobre uma das grandes declarações do subcomandante Marcos (que representa todos líderes zapatistas) em que afirmava ser “gay em São Francisco, asiático na Europa, negro na África do Sul, judeu na Alemanha nazista, palestino em Israel, pacifista na Bósnia, dissidente no neoliberalismo, etc.”, fala que contribui com a ideia do espírito solidário dos latinos com os oprimidos do mundo, sempre defendido pelas resistências anti-imperialistas no continente.

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E como pensar os filhos e entes queridos que passam pelo inferno construído do sangue na nossa terra?

O primeiro depoimento do filme é de uma avó da Praça de Maio, movimento de mulheres que tiveram seus filhos assassinados pela ditadura argentina e lutam para encontrar seus netos, muitas vezes entregues a famílias apoiadoras do regime ou de outros países próximos, esse depoimento se conecta com um dos últimos em que uma família do México conta como o pai e marido foi sequestrado e torturado por dias por milicianos na fronteira com os EUA, o sonho dele na primeira visita do diretor era estudar. Ou ainda o fazendeiro guatemalteca que sonhava com o fim dos massacres na sua cidade, essas e outras histórias marcam a violência financiada na América Latina, onde estados se aliam ao narcotráfico e as milícias e juntos promovem um verdadeiro genocídio contra suas populações. Isso que torna esse filme tão grandioso, essas pequenas histórias fora de contexto podem significar várias coisas, mas juntas elas são a fiel fotografia do que ocorre em nossas vidas. O diretor ainda traz uma família de classe média na Colômbia, que sonhava em voltar a Europa, esse depoimento revela também o olhar crítico e ativo com que o filme trata seus personagens, pois é dado pela empregada da família, que não está nessa nem em nenhuma das fotos, apesar de dizer no começo que ama a parede de retratos dos seus patrões.

“Mapa de Sonhos Latino-americanos” é um filme surpreendente, muito triste ao constatar a realidade em que vivemos, mas muito potente ao mostrar que, apesar disso, resistimos. É lúdico ao representar seus personagens através da arte e ao mesmo tempo mostrar a reação que eles têm sobre seu passado e seu presente. É intenso porque mexe com tantas emoções possíveis e impossíveis sem um minuto de folga, dando um necessário soco no estômago do seu público e por isso é um dos grandes filmes feitos nos últimos anos. Que possa circular por muito tempo.

Termino com uma frase da música “Latinoamerica”, do grupo porto-riquenho Calle 13: “Sou América Latina, um povo sem pernas mas que caminha”.

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