Crítica | Duna (2021)
É Possível contar uma história pela metade? Bom, não. Em alguns casos, especialmente no cinema, se pode abrir mão das estruturas da linguagem em prol de objetivos narrativos ou artistícos ambiciosos. É isso que Villeneuve tenta fazer em “Duna”? Também não.
Na verdade, é difícil saber qual era a ambição real do diretor com esse filme. Muito se falou sobre a escala de produção que ele trabalhou, da vontade de fazer uma adaptação fiel e correspondente ao clássico de Frank Herbert, mas após os 160 minutos de “Duna: Parte 1” fica nítido que o diretor pode ter subestimado a complexidade e a duração da jornada de Paul Atreides. Porque o longa de 2021 passa mais tempo correndo para introduzir conceitos importantes para sequências, que sequer estão oficialmente em produção, do que de lidando com histórias importantes para o filme, a sensação após quase três horas não é de encerramento e nem mesmo de cliffhanger, apenas que se escolheu um ponto de uma série para cortar com tesoura, algo que até a horrorosa trilogia “Hobbit” soube lidar melhor. Para além disso, tudo que foi prometido visualmente é cumprido com louvor pela produção, os figurinos, os cenários, as sequências de ação, o som e a trilha sonora são executados de maneira tão excepcional que é realmente impossível não imergir na película, o planeta Arrakis é reproduzido como um deserto infinito e sufocante e os vermes da areia são tão assustadores quanto qualquer mente lendo o livro de 1965 poderia conceber. Meu problema é que se Denis Villeneuve afirma com tanta certeza que “Duna” tem que ser assistido no cinema por conta da escala visual utlizada é contraditório ele não se importar em não cumprir a escala narrativa correspondente ao cinema, como se apenas forma sem conteúdo fosse suficiente para justificar tamanha pretensão do diretor.
“Duna” conta a história de Paul Atreides (Timothée Chalamet), filho do Duque Leto Atreides (Oscar Isaac) e Lady Jessica (Rebecca Ferguson), uma Bene Gesserit, espécie de feiticeiras do universo em que a história se passa. O enredo começa quando o Imperador ordena que a família Atreides tome como feudo o planeta Arrakis, um deserto inóspito da onde o Império extrai o seu principal recurso mineral, a Especiaria. A ordem ocorre após a retirada de outra família, os Harkonnen, liderados pelo Barão Vladimir Harkonnen (Stellan Skarsgard) e seu sobrinho Glossu Raban (Jason Bautista), o que não passa de uma manobra entre o Imperador e o Barão para a destruição do clã Artreides. Em Arrakis, porém, o povo do deserto, os Fremen, está em guerra com os Harkonnen e enxergam em Paul seu possível messias que irá libertá-los em uma Guerra Santa para transformar seu planeta em um paraíso, o jovem herdeiro tem dons premonitórios e é treinado por sua mãe para ter as mesmas habilidades sobrenaturais que ela, o jovem tem constantes visões com Chani (Zendaya), uma fremen. A família Artreides conta com conselheiros próximos que ajudam nos assuntos oficiais e no treinamento de Paul, como o Mentat, espécie de conselheiro, Thufir Hawat (Stephen Mckinley Henderson), os mestres-de-armas Gurney Halleck (Josh Brolin) e Duncan Idaho (Jason Momoa) e o médico Dr. Yueh (Chang Chen).
Parte da frustração com “Duna: Parte 1” é conhecer o livro e saber que se o objetivo era fazer um filme com o primeiro terço dele, seria algo não só concebível como potencialmente excelente, é a parte mais densa da história, com intriga, com mistério e um universo de possibilidades narrativas poderosas e instigantes, o que Villeneuve faz por outro lado é apenas levantar indicações para possíveis sequências sequer confirmadas, caso elas não sejam produzidas não é exagero afirmar que 165 milhões de dólares foram pro lixo. “Duna” é um filme sem personagens, há várias pessoas com nomes (e algumas com sobrenomes), mas não sabemos nada sobre nenhuma delas, não entedemos como ou por que as coisas acontecem. Se por um lado, o roteiro sai do seu percurso natural para reproduzir sequências do livro, a capacidade de construir e extrair o que é importante nas mesmas cenas é desproporcional. Por exemplo, logo depois de chegarem a Arrakis, Paul é atacado por um dispositivo em seu quarto, após ele conseguir neutralizar a ameaça Thufir Hawat tenta se demitir, por que? e por que o Duque Artreides não aceita sua demissão? o que o Mentat (palavra que no filme não é citada) tem a ver com o ataque sofrido por Paul? e assumindo que o filme desse a resposta para essa última pergunta, se Hawat toma tanto cuidado com os Artreides como ele sequer suspeitou de Yueh? Obviamente há respostas nítidas para todas essas perguntas no livro, que o filme não chega perto de tentar responder, tirando qualquer possibilidade de coerência interna possível na narrativa. São quase três horas de cenas acontecendo sem que o público tenha qualquer ideia do motivo de nada, boa parte delas é dedicada a jogar termos soltos que poderão servir para outras películas ao invés de apenas se dedicar a contar uma história e incomoda o tamanho da oportunidade desperdiçada nesse sentido.
Por outro lado, algumas coisas funcionam bem e conforme esperado a produção é algo realmente impressionante, tudo fica imenso, mas de um jeito elegante, o palácio de Arrakis é um dos cenários que chama atenção, se colocando numa dimensão ainda mais monumental do que no livro, cômodos importantes como o quarto de Paul e a Sala de Jantar são construídos para maximizar tanto a sensação de grandiosidade como o desconforto entre os Artreides e o espaço. Outra construção de tirar o fôlego (literalmente) é o deserto de Arrakis, não só visualmente (que já é bom) mas sensação desesperadora da areia e da seca infinita, a maneira como a especiaria é mostrada também agrega muito, algo fundamental para todo enredo de “Duna” mas que poderia ser difícil de representar espacialmente, mas um dos takes mais bonitos do filme é justamente com a substância vermelha no ar em volta de Paul e Jessica. Alguns atores chamam atenção também, eu, que particularmente não gosto muito de Chalamet, acredito que ele tenha encarnado uma versão coerente de Paul para o filme, Ferguson faz uma Lady Jessica quase a altura da impactante personagem concebida por Herbert, o que é uma missão muito difícil visto o tamanho dela no livro e Jason Momoa é uma grata surpresa como Duncan Idaho, é o melhor personagem do filme, mesmo que tenha poucas cenas, sua função é bem explicada desde o começo e até o final entendemos o que está em jogo para ele frente a trama.
Villeneuve segue sendo um dos melhores diretores de Hollywood, tanto trabalhando com material original como com propriedade intelectual ele mostrou capacidade de produzir filmes épicos de larga escala com tramas complexas, infelizmente em “Duna” o diretor parece ter tido dificuldade em fazer escolhas que deveriam ser mais fáceis para alguém do calibre dele. Mesmo que se tratasse de uma produção do tipo “Senhor dos Anéis” em que a trilogia foi gravada junta e lançada separadamente em três partes, haveria buracos no roteiro de “Duna” que nenhum dos filmes de Peter Jackson têm, mas nesse caso existe a possibilidade de nunca termos uma sequência sendo produzida e aí é bastante frustrante a falta de dedicação de Villeneuve em fazer o que ele mesmo faz de melhor para tentar forçar a criação de uma franquia. Voltando ao questionamento do início, “Duna” é uma história inacabada, que estabelece muitos conceitos sem dar significado para eles e desperdiça tempo com cenas secundárias, como as intermináveis visões de Paul com Chani (a troco de comparação, no livro a personagem só é vista uma vez antes dos dois se conhecerem), as cenas em países como Salusa Secundus e Giedi Prime poderiam ser substituídas por diálogos entre Leto e seu conselho para destacar os personagens importantes. Então o excesso de detalhes não enriquece o roteiro, pelo contrário, deixa questionável os motivos para sequer assistir a “Duna”. Ao final fica a sensação de ter acabado sem finalizar nem mesmo o que havia sido construído até a última sequência, e não há ganhos estéticos suficientes para recompensar tamanho sacrifício narrativo.