Crítica | Kairo (Pulse)

o horror da era digital

Em um de seus filmes mais conhecidos, Kiyoshi Kurosawa atualiza o Horror para o século 21


Kiyoshi Kurosawa precisou de um único plano pra me deixar apavorado. Um plano que só faria sentido no final do filme, que na primeira vez quando o vemos, nada mais é do que uma mulher encarando o mar, com o vento fazendo seus cabelos voarem frente ao céu nublado. Antes disso, um pulsar ainda nos créditos do filme, uma tentativa de comunicação que, assim como o a imagem em si, faria sentido apenas no fim.

E não que seja difícil me deixar apavorado, sou um notório cagão pra filmes de terror, mas Pulse me deixou de um jeito que não ficava desde a primeira vez que vi A Visita. Ainda assim, se o filme impregna em você é menos pelo domínio de Kurosawa sobre a iconografia do Horror, e mais pelo que ele consegue comunicar com esse domínio. Um filme que assusta, mas o faz em prol de um processo de auto-reconhecimento que pode resultar em uma catarse pessoal.

O TEMPO NO ESPAÇO METAFÍSICO DE KUROSAWA

Não muito diferente de Cure, Pulse é um filme que mesmo que ofereça uma relação clara com a linguagem, conduz nosso olhar por uma experiência ao mesmo tempo intensa, sensorial, mas desnorteante. Nem sempre a linearidade da narrativa é clara, nem sempre a continuidade de eventos é mais importante que a de sensações, e ainda mais que em outros de seus filmes, a verdadeira natureza daquilo que assistimos acaba se esgueirando pela mise-en-scène.

As figuras modificadas podem não saltar a tela como em O Chamado, mas percebam como há menos preocupação em mostrar a aflição dos personagens do que criar uma atmosfera que nos coloca como observadores. São eles que vêm os acontecimentos sobrenaturais por telas, mas somos nós quem reagimos com dois espaços de distância.

Impressiona também a simplicidade desses momentos: um frame desaparece em fade enquanto uma sombra caminha, vemos uma sombra na parede e, com um breve jogo de plano contra-plano, nos assustamos ao nos deparar com um ser humano (essa uma das sequências mais potentes do filme, tanto prática como conceitualmente), mesmo um suicídio impactante de cima de um prédio (uma cena que comprova o poder do digital) é visto com uma implacabilidade digna de Kenji Mizoguchi. E assim outros momentos menos ambiciosos assumem também essa aura assombrosa: alguém encostado no canto parece suspeito, o próprio diretor olhando diretamente para a câmera vai além da metalinguagem e da homenagem à uma de suas maiores influências - a qual ele evoca novamente com a caminhada de Vertigo.

A lateralidade que Kurosawa tanto gosta surge com uma câmera que me parece não obcecada, mas curiosa. Quase como que responsiva aos movimentos dos atores, ela leva um segundo para seguir alguém aqui, parece não saber se decidir a quem seguir ali. Constantemente enxergando por janelas, portas ou por trás de plantas e móveis, a sacada é que isso não parece ter intenções voyeuristicas, nem nos personagens nem em nós, mas sim em explorar essa relação de fascínio por um desconhecido que nunca compreendemos direito.

UM SOBRENATURAL REVELADOR

Após dois dias de reflexões, e com o monólogo (por pensamento) final quase didático, não se torna tão difícil entender a metáfora por trás de Pulse.

Por mais assustadoras que aquelas “criaturas” sejam - a tal cena da caminhada me fez cogitar dormir com a luz acesa -, elas nada mais são do que a extensão metafísica da própria solidão, depressão e medo de seres que vivem uma transição desesperadora entre o mundo de outrora e essa aberração conectada que temos hoje. A internet é apavorante para Ryosuke, e logo se prova inexplicável para Harue (as bolinhas) que, em mais uma referência ao cânone de Vertigo com ecos de Estrada Perdida, encontra seu próprio fim ao se descobrir vivendo no mesmo plano dos fantasmas - e aqui outros filmes podem ser citados, de Blow Up a In a Lonely Place.

Esse plano, então, seria a internet que, duas décadas após o lançamento do filme, parece ser um prisma para nossos anseios? Com o conhecimento na palma das mãos e com o mundo inteiro conectado, não encontramos refúgio ou cumplicidade, apenas estamos cientes da solidão de cada um, isolados em nossos próprios cubículos em um filme que, 19 anos antes, pareceu prever o apocalipse social e mental causado pela pandemia em 2020 - além de servir como um belo complemento para A Rede Social, caso não seja óbvio.

A partir de sua segunda metade, então, Pulse deixa de ser um filme compromissado em provocar medo, mas inverte a jornada comum de um filme de terror nos fazendo enfim nos importar com aquelas pessoas. E não por serem particularmente boas ou interessantes - o Cinema Japonês é menos moralista nesse sentido -, mas por viverem os mesmos horrores que nos assustam quando projetados em tela e que, quem sabe, compartilhamos também.

Assim, se lá Kurosawa sugere uma cura maligna para nossa falha espécie que não consegue evitar a própria natureza destrutiva, aqui talvez ele tenha encontrado: sozinha com seu único amigo no mundo e seguindo um pulsar esperançoso, Michi é capaz de evitar o mesmo fim daqueles que nunca se encontraram. O que, de maneira alguma, diminui o impacto do desolador plano inicial, apenas transforma o medo do desconhecido na dor daquilo que descobrimos ao longo do filme - e de nossas vidas.

Mesmo conectados, seguimos sozinhos.

10

Anterior
Anterior

Crítica | Yojimbo

Próximo
Próximo

Crítica | Belle