Crítica | Cure
mesmerizando a mise-en-scène
Em Cure, Kurosawa corrói o Realismo com o veneno do Horror
Poucos cineastas trabalham tão bem com a verossimilhança no Cinema contemporâneo como Kiyoshi Kurosawa - que não, não tem parentesco com aquele Kurosawa. Seus filmes, mesmo que puxando de tradições sobrenaturais do Horror, não deixam de situar em um mundo cinematográfico crível e essencialmente japonês, raramente usando de artifícios formais que fujam da abordagem sóbria.
Não é nem uma rejeição pelo jumpscare, mas por qualquer escolha que fuja dessa encenação sugestiva e torne tudo literal demais - os efeitos visuais de Before We Vanish, por exemplo, vem como um fim e não como um meio. Seu Horror se constrói mais em ideias e interações do que no apelo visual, seus personagens influenciam o filme que se encontram e corroem o realismo com sugestões de um mal inerente, algo que, em Cure, seu primeiro grande sucesso, atinge níveis quase inalcançáveis.
Um cineasta inferior não hesitaria em lucrar em cima da história: uma série de assassinatos onde as vítimas são marcadas com um X no pescoço, e os assassinos além de serem parentes próximos, não se lembram de nada que aconteceu.
A abordagem de Kurosawa, no entanto, torna tão real essa premissa quase fantástica que prepara o terreno para sua relação direta com a realidade: apesar de os casos serem fictícios, são relacionados com a teoria anteriormente “aceita” de Franz Mesmer, uma espécie de hipnose com resultados mais extremos. Quando nos deparamos com esse conceito, não há reação possível se não terminar o filme e procurar sobre a prática julgando a possibilidade de tudo que assistimos, o que não apenas eleva o potencial da obra, mas torna seu impacto duradouro.
RECONHECENDO TRADIÇÕES
É curioso como Kurosawa pega de tantos filmes anteriores, mas condensa ali algo que seria recriado inúmeras vezes depois, seja por ele próprio com Creepy, ou por filmes como Paprika, A Origem, O Lamento. O conceito de identidade fluida empresta de A Coisa; o body horror dos corpos mutilados mas sem enxergarmos a violência, e até a personalidade do vilão, lembram Se7en; o X marcado é quase uma referencia direta a M; a máscara com o rosto quase apagado lembra a capa de Page of Madness (esse talvez a maior influência); a interação na praia puxa de Persona; e como não poderia deixar de ser, em certo momento o detetive Takabe surge das sombras e caminha quase como um fantasma em direção a câmera, emulando Vertigo.
E essas referências sempre surgem de maneira que quebram a lógica realista da encenação: se nos momentos de investigação e até de crime Kurosawa usa da lateralidade que tanto gosta com planos quase sempre abertos, com seus personagens percorrendo os cenários sem parecer chegar a lugar algum, quando estamos mais próximos dessa relação com o Horror ele alterna para um plano/contra-plano com ângulos estranhos (quase um Ozu), para planos detalhes metafóricos (a água escorrendo) ou mesmo para uma montagem frenética que derruba a linearidade espaço-temporal (Villeneuve e Nolan brincam disso também, mas raramente com tanta maestria). É uma mise-en-scène essencialmente influenciada pelos acontecimentos de sua narrativa, corrompida pela intoxicação do método de seu vilão que torna aquele cotidiano fúnebre e desgastado em uma experiência traumática, a visão geral do dia a dia substituído pela marca do sobrenatural, que termina por desnortear nossos sentidos em um filme que se apresenta tão claramente.
Impressionante também como ele abusa de planos que poderiam soar industriais, mas nunca foge desse mirar humano, uma câmera que parece obcecada com Takabe no início, disfarçando ao seguir outros personagens, mas sempre centralizando em torno dele. E se a lateralidade sugere esse jogo de gato e rato sem conclusões, quando ele abusa da profundidade é como se seus personagens ou afundassem nas trevas (a mulher sendo levada ao hospício), ou tentassem sem sucesso fugir delas (a caminhada de Vertigo, o rosto apagado como um espectro governante ao fundo). Kurosawa cria suspense nesses pequenos momentos, nessa exploração espacial das cenas sempre auxiliada por uma trilha sonora dissonante, e é brilhante a cena onde as batidas são criadas por Mamiya, mais um caso de conteúdo influenciando a forma.
O PÓS HORROR?
Apesar de se importar menos com significados do que significantes, é imprescindível tentar desvendar as intenções de Kurosawa com Cure.
O nome da projeção já sugere uma complexidade acerca do entendimento das práticas de Mesmer, com a cena de interrogatório sendo possivelmente o ponto chave da narrativa e do conceito. Apostando menos na figura esquisita de Mamiya como gostaria o Cinema Americano, no momento que aceitamos sua idiossincrasia tendemos a menos nos impressionar por ela, a não mistificá-la, mas tentar desvendá-la e entendê-la. É óbvio que Hannibal, John Doe e Norman Bates são psicopatas perigosos, mas suas intenções são sempre claras (mesmo que os dois últimos tenham reviravoltas finais elas não fogem de suas caracterizações), já o vilão interpretado por Masato Hagiwara ganha os contornos de salvador que aqueles não poderiam. Afinal, suas intenções eram ruins, ou ele acreditava que a Cura para a humanidade vinha dessa prática secular?
O bate e volta dos dois atores no interrogatório se torna então uma das grandes cenas do gênero, superando consideravelmente alguns dos filmes anteriormente citados ao realizar um embate onde adversários acabam se tornando um, simbolizado pelo toque na testa que é o auge da tensão na narrativa.
Ao abdicar desse conceito individualista de identidade, Cure parece emular também o final de Evangelion. Não seria a coletividade proporcionada por uma prática que nos permite conectar fluidos magnéticos a salvação de uma espécie destrutiva, que originou aquele mundo fúnebre do qual a Fantasia nos ajudou a fugir? O ponto é que, mesmo que a resposta seja sim, a figura de Mamiya corrompe tudo ao propor uma purificação não pela clareza da água, mas pelo sangue turvo que escorre das vítimas.