Crítica | Miss Oyu
ENTRE A SORORIDADE E A IRONIA
Precedendo Vertigo e recriando Sunrise, Mizoguchi constrói em Miss Oyu mais uma obra prima
Existem poucas coisas mais legais na arte que aqueles artistas e obras que chamamos de nossos. Que a popularidade é inferior ao que julgamos ser merecido. Não que Kenji Mizoguchi, um dos três maiores diretores da história do Japão, seja esquecido, mas mesmo entre os meios cinéfilos sinto como se acabasse tendo a magnitude de sua obra preterida por Akira Kurosawa, Yasujiro Ozu e, claro, as dezenas de outros grandes diretores do mundo todo.
E assim, um filme como Miss Oyu acaba sendo pouco ou nada comentado próximo a clássicos como Ugetsu, Intendente Sansho e Amantes Crucificados, ou mesmo ao semelhante Pai e Filha.
UMA COMÉDIA DE REFERÊNCIAS
É curioso então que a primeira metade soe justamente como uma comédia de costumes à la Jean Renoir com um tratamento de Ozu, mas com uma acidez que chega até a lembrar um Billy Wilder e que facilmente figura como o pedaço mais cruel de Cinema que vi de Mizoguchi até hoje - o que definitivamente quer dizer alguma coisa. A câmera parece se divertir com os acontecimentos, ao passo que a edição de Mizuzo Miyada picota o filme mais do que um Mizoguchi comum e o que torna esse, talvez, uma boa carta de entrada para alguém não acostumado com o diretor.
Mas o que começa como uma brincadeira de mau gosto - toda a situação envolvendo o triângulo amoroso soa até bem norte-americano - logo se desenvolve em uma síntese da complexa e estúpida relação da cultura japonesa da época com a natureza do ser humano. Shinnosuke dá uma simples caminhada no bosque e encontra sua prometida antes da hora marcada. Ao confundi-la com a irmã mais velha que, viúva, não pode casar novamente, ele prontamente se apaixona pela mulher que julga ser a certa.
Ao analisar todos os elementos desse momento que faz o filme desencadear, vemos uma prévia de Sansho (a natureza, o bosque, o encantamento que se torna tragédia) mas também de Vertigo: Shinnosuke idealiza a mulher “errada” ao observá-la secretamente e, por devoção, Shizu passa o resto do filme tentando se adequar ao que era a irmã mais velha - em um trabalho seminal de Nobuko Otowa, musa de outro grande diretor japonês em Kaneto Shindo. As tentativas, além de frustradas, remetem diretamente ao também seminal Spring In a Small Town, outro filme com um triângulo amoroso onde o cenário ao redor tem parte crucial na narrativa.
E se as referências se somam é porque o Cinema de Mizoguchi, por mais que essencialmente japonês e sobre o Japão, serve como um microcosmos do poder absoluto da imagem e suas muitas vertentes. Se todos esses são referencias diretas, é impossível saber (afinal, boa parte dos clássicos japoneses conheceram o mundo décadas depois), mas para um Cineasta tão formal e consciente como ele, tudo é possível.
A TRAGÉDIA JAPONESA
Talvez a segunda metade torne a primeira algo ainda mais cruel. Marcada por um plano sequência que figura como uma das melhores e mais aterradoras cenas que já vi, a transição para o estilo usual de Mizoguchi é tão intensa e irrefreável como a visão do próprio sobre os costumes limitantes de seu país. Assim a sororidade do ato de Shizu é ao mesmo tempo louvável, mas nos faz questionar porque aquelas pessoas não podem seguir seus corações livremente - e aí nos lembramos que Mizoguchi já respondeu isso em Amantes Crucificados.
Na segunda metade a câmera novamente se torna implacável, inesitante, se abrindo para um palco de teatro onde seus personagens se despedaçam e não temos nenhum controle sobre o que vemos. É uma exposição que parece tornar a dor dos personagens em algo ainda mais potente, mas que também potencializa nossa própria experiência. Em um simples diálogo, a vontade é virar o olho pelo desconforto. Não somos transportados para aquele mundo (Hitchcock e outros revolucionariam isso anos depois) mais do que apenas o presenciamos em todo seu desdém.
E como não há nada mais implacável que a natureza que nos cerca, o filme termina onde prontamente começa. Se a tragédia que tomou conta da vida daquelas pessoas se inicia em um bosque, agora Shinnosuke não tem o que observar exceto a lua enquanto caminha para fora do quadro. O acaso que mudou sua vida se torna em um vazio interminável que, para o rio e a mata, soam tão indiferentes como para a câmera que, de tão anestesiada, parece nem mais sentir. O que, graças à mágica de Mizoguchi, incrivelmente aumenta nossa própria relação com a obra.