Crítica | Yojimbo

SAMURAI MANEIRISTA

Em um de seus filmes mais celebrados, Kurosawa referencia a própria iconografia que construiu na década passada


Vou ser pago pra matar, e essa cidade tem muita gente que merece morrer.

Dos diretores que glorificam a violência como solução para conflitos, Kurosawa é de longe o mais legal.

Sergio Leone aperfeiçoou a construção do mito, Michael Mann expandiria as possibilidades do digital, Tarantino tornaria as referências o mote principal, … mas nenhum parece tão apaixonado por essa diversão quase infantil de resolver tudo na porrada como o mestre Japonês.

UM MANEIRISMO ANTECIPADO

E o mais legal de Yojimbo é que já começa assumindo essa postura auto-referencial do próprio trabalho do Kurosawa e da postura do Toshiro Mifune: ele chegando em uma cidade/vilarejo entre a tentativa de progresso e os escombros da briga de gangues que governa o local. Assim como Shane (que precede esse) e Clint Eastwood e Samurai Jack e Drive, Sanjuro chega sem conhecermos nada dele, mas instantaneamente ganha nosso apreço por já termos ideia do que a cara carrancuda de Toshiro sugere.

E maneirismo da história acompanha a forma. Desde a encenação espetaculosa, com os atores claramente se divertindo, à cortes significativos como Sanjuro esticando a mão sorrateiramente em direção a espada e, momentos depois, para se apoiar em algo para conseguir se levantar. Da tríade dos grandes cineastas Japoneses, Kurosawa é de longe o que consegue imagens mais icônicas, e toda aquela antecipação do final (algo que Cidade de Deus usaria!) com um bando de um lado e um único homem do outro (mas um homem que sabemos quem é) é coisa de gênio.

Diferente de Os Sete Samurai, é um filme mais escuro, mais estilizado, que chega até a brincar com o noir em certos momentos onde os personagens tramam coisas pela cidade à noite. Volta e meia as figuras mais trágicas, como o velhinho, são rodeados de escuridão, algo que me remete até ao Cinema Mudo, como que focalizando nosso olhar no que há no centro da tela, tornando os diálogos essencialmente práticos em veículos pra emoções mais complexas. É também o ápice do movimento de cena de Kurosawa (um ápice que durou décadas), com ele orquestrando a ação de maneira clara e até abrupta. Os combates são poucos e curtos, mas intensos e com uma visceralidade que com certeza influenciaram Scorsese.

A REJEIÇÃO DO MORALISMO

Mas diferente do filme de George Stevens, e do Cinema Norte-Americano como um todo, não há aquela necessidade constante de provar valor - tanto para as necessidades da narrativa, como morais.

Sanjuro imediatamente começa a manipular e corromper a guerra das gangues para benefício próprio, em um filme que por boa parte assume esse tom quase novelesco de farsa maquiavélica, com a trilha se divertindo particularmente com isso (e me pergunto se não influenciou Cowboy Bebop com seu uso idiossincrático de Jazz). Assim a figura dele toma mais forma ainda do que aquela breguice do Shane ajudando a família e da criança berrando o nome dele a cada dez segundos (e eu gosto do filme, mas aqui é um nível completamente diferente), se o homem fosse um empregado budista de bom grado que recusa até o flerte com a mulher do amigo novo, talvez não estivesse fugindo por aí.

Inclusive, essa relação de Kurosawa com o Faroeste Norte-Americano escancara as diferenças entre Japão e Estados Unidos. Enquanto um gênero geralmente (repito, geralmente) vangloria a permanência de valores conservadores com hipocrisias e incongruências (a representação dos índios sendo uma), Kurosawa desafia justamente a corrupção trazida pelo mundo industrializado (o Samurai com a arma), mantendo a honra secular como valor essencial.

UM FILME EM UM ATO

Mas acho que nada impressiona mais do que o último ato, onde ele constrói um arco completo pra Sanjuro em pouco mais de trinta minutos.

Sua farsa é descoberta naquela cena de bar que não podia ser mais novela; ele acorda em pedaços, se arrastando; é salvo com ajuda do fiel amigo (que tem que enganar um outro idiota pra isso); se recupera e treina (a simplicidade do plano/contraplano dele mirando e a faca acertando o papel é algo); e num rompante de raiva retorna pra resolver a situação. Sabemos o que vai rolar depois, e a sensação é de mesmo pra quem não conhecia os 60 anos de influência de Yojimbo na cultura Pop, poderia adivinhar o desfecho.

Praticamente materializando esse maneirismo, um filme sobre farsas e manipulações tão óbvio que seu prazer se torna justamente antecipar os acontecimentos, e aí o trabalho de construção da iconografia fica mais fácil ainda. Ver Sanjuro aniquilando os bandidos (e depois saindo de cena como todos os caras legais fazem) vira um daqueles prazeres que só o Cinema, de todas as artes, consegue produzir.

9

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