Crítica | Vestida para Matar
psicose como estilo
Clássico de Brian De Palma é reverente em sua irreverência
A carreira de Brian De Palma é extensa e conta com uma variedade considerável de gêneros, temas e ideias. Porém, é indiscutível como seu lugar no panteão do Cinema foi conquistado principalmente por conta de seus filmes de gângster (Scarface, Os Intocáveis, Pagamento Final), para cinéfilos mais casuais, e por suas aventuras Hitchcockianas para aqueles menos preocupados com as agendas das grandes publicações - leia-se, cinéfilos de poltroninha. (seja lá o que isso signifique)
Se Trágica Obsessão é praticamente uma releitura de Vertigo, Vestida Para Matar surge como a versão vulgar de Psicose, que substitui as intenções objetivas de sua protagonista (roubar dinheiro) por uma relação perigosa entre desejos e patologias.
Apesar de ser para muitos só um exercício de estilo, a questão é que com De Palma o estilo é o conteúdo. As referências diretas são o seu principal comentário, estabelecendo nessa sua saga de homenagens à Alfred Hitchcock a reverência ao Cinema como tema central - e emprestando outros como o melodrama, o limiar entre o suspense e o medo e, obviamente, a diversão sádica que sentimos com um voyeur violador. Se o mistério pode parecer óbvio para alguns (pra mim não foi, mas nunca pego nada), a questão é o quão divertido é acompanhar sua resolução.
DESPINDO O PUDOR
Apesar de ser consistente em seus curtos 100 minutos, é possível dizer que Vestida Para Matar é um filme de três sequências, todas em sua primeira metade e dialogando com a ideia de desnudar sua (primeira) protagonista - indo de encontro ao título -, para então estabelecer sua trama.
A primeira delas, a referência mais óbvia à Psicose, mas também à própria proposta do filme. Nela, a personagem de Angie Dickinson sonha acordada com um sexo que vira assassinato no chuveiro, em uma cena ao mesmo tempo trágica - por revelar suas frustrações com o casamento, estabelecendo seu drama pessoal -, divertida - a câmera passeia lentamente por seu corpo nu, de modo que deveria ser sensual, mas a coisa é tão chanchada melodramática que inspira o riso -, e principalmente sintomática do filme que assistimos. Ao associar o ato do assassinato com as fantasias de Kate, o filme mostra sua irreverência e posicionamento perante os códigos morais de um Cinema cada vez mais rebelde.
A segunda, uma referência direta à Vertigo, onde De Palma investiga a mente frustrada da personagem. Sentada em uma exposição de arte, Kate se atrai por um homem simplesmente pelo mistério do voyeur, por poder observá-lo e julgar que ele também a observa, pela tensão viciante de seguir alguém, e pelo medo (lembrem, ela tem um quê de masoquismo) de ser seguida. O jogo de movimento e cortes é entre os mais absurdos que o Cinema produziu, alternando entre uma cada vez mais enfeitiçada Kate (de novo, pelo próprio ato, não pelo homem) e entre o que ela vê, nos dando seu lugar de observadora. A sequência explora o espaço ao mesmo tempo que intensifica a curiosidade pelo desconhecido, delineando o quão obsessivo e potencialmente destrutivo são os desejos da protagonista.
A terceira, possivelmente um dos assassinatos mais brilhantes do Cinema (e é a segunda vez que uso hipérbole no texto, mas acho que cabe), que provavelmente deixaria Hitchcock orgulhoso (ele faleceu meses antes de o filme ser lançado).
Recheada de culpa, Kate entra em um elevador espelhado o suficiente para se poder ver reflexos desbotados, mas que parece um fundo inteiramente escuro quando não refletindo nada. Em vários dos planos, em meio à escuridão, é como se ela habitasse uma dimensão alternativa onde reflete sobre sua infidelidade. Ali, De Palma poderia ter seguido com um poderoso drama, mas com um simples plano contraplano, ele não só resgata os cortes abruptos e a trilha aguda de Psicose ao assassinar a protagonista na metade do filme, mas se apropria também do Giallo e sua escatologia, com os zooms em rostos sendo menos interessantes apenas do que quando vemos a cena pelo espelho no canto do elevador. Após despir seu corpo e seus desejos, De Palma finalmente a despe de vida e, assim, o filme sai de Kate e vai para Liz Blake, como se o espelho não apenas revelasse, mas se tornasse uma espécie de ponte para a psicopatia da assassina - e o cineasta está tão preocupado (não está) em não tornar o mistério previsível que a guria simplesmente fala “é verdade que tem uma trans subindo?” enquanto espera o elevador.
SAINDO DO ESPELHO
Apesar de a narrativa se tornar clara a partir da última das três sequências, inclusive abdicando do fator do desconhecido por uma trama mais comum, não deixa de ser instigante justamente por como trata as tentativas de resolução do mistério.
Os split-focus, inicialmente utilizados em flashbacks que surgiam como manchas na mente de Kate, se tornam então ferramentas do presente, como que se o filme questionasse a índole de cada um de seus personagens. O jogo de memória de Liz remete à trama central de O Pássaro das Plumas de Cristal, assim como a própria maneira de investigação do gurizão, algo bem manual e com as gambiarras que Argento gosta tanto. Se o mal veio do espelho, ele será despido pela câmera. Se um refrate, a outra revela.
Mas claro que, no Cinema (e aqui começa o que poderia ser chamado de a Trilogia da Filmagem de De Palma), há mais do que só a câmera. A encenação é peça chave de Vestida Para Matar, dependente do talento de Michael Caine e sua figura austera, mas também de todo o jogo de blocking e condução espacial dos atores em cena. Até os diálogos do homem parecem matematicamente calculados, um jogo de ida e vinda que ele controla perfeitamente, o que em retrospecto é exatamente o que ele precisa para manter seu disfarce: controle absoluto.
A única maneira de desmascará-lo, então, seria respondendo encenação com encenação, mas dessa vez apelando para a mesma construção que De Palma fez na primeira metade do filme. Liz precisa ficar nua física e mentalmente na frente de Robert para poder despi-lo de seu verdadeiro disfarce.
No fim, o protagonista acaba sendo a própria Bobbi (outro apelido pra Robert) e sua cruzada para se libertar. O que torna o filme de De Palma um favorito da comunidade LGBTQIA+, pois apesar da psicopatia de Robert estar associada à suas frustrações , de acordo com o próprio diretor: a maneira livre e extravagante como o filme se veste faz o oposto de julgar sua protagonista transgênero. É um filme que, acima de tudo, comprova que a forma está sempre acima do conteúdo, simplesmente porque pode moldá-lo da forma que bem entender.
Sim, sua vilã é transexual, mas Vestida Para Matar é tão apaixonado por essa vilã que é inteiramente sobre ela.
9.5
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Das sortes da vida: tinha planejado assistir ao filme em uma situação que a sequencia inicial seria, no mínimo, desconfortável. Felizmente, acabei assistindo da melhor maneira: sentado no mais próximo que tenho de uma poltroninha, na paz de casa.