Crítica | Blow Out

CINEMA SOBRE CINEMA

Um dos filmes mais apreciados de Brian De Palma faz do maneirismo teoria


Votado como melhor filme dos anos 80 pela jovem cinefilia brasileira, Blow Out é dos mais curiosos filmes de Brian De Palma. Se Trágica Obsessão e Vestida Para Matar são referencias diretas à Vertigo e Psicose, este faz ao menos mais uma parada após o Cinema de Hitchcock.

Em Blow Up, de Michelangelo Antonioni, um fotógrafo acredita ter fotografado um assassinato, e começa a juntar as peças do quebra-cabeça analisando fotos despretensiosas que tirou em um parque. O que torna Blow Out um remake até mais fiel do que Trágica Obsessão: interpretado por John Travolta, o protagonista trabalha como técnico de som em filmes B, até que acaba gravando - sonoramente - um acidente de carro. Ao analisar os áudios, um barulho o faz pensar que o acidente foi premeditado.

Mesmo que americanize completamente sua narrativa, que sejam separados por uma década e meia e pelos maneirismos de De Palma que contrastam com o Slow Cinema de Antonioni, ambos os filmes dividem a mesmo cerne.

A NATUREZA DO CINEMA

Coisa comum nos Hitchcockianos de De Palma, a sequência chave vem logo no início, quando Jack grava os sons noturnos em um parque, à noite - embora o slasher voyeurístico que surge como enganação também mereça destaque.

Em uma aproximação direta entre a Natureza e a Arte, o diretor (que também roteirizou o projeto) joga para cima seu zelo mesmo à mais estúpida das expressões artísticas. O intuito de Jack, afinal, é conseguir efeitos sonoros para slashers baratos, onde mulheres são escolhidas para aparecer por conta de seus seios e para gritar por conta de suas gargantas.

Mas não é porque dificilmente vai ganhar um Oscar (aqui De Palma já ensaia sua crítica à Hollywood que vem de maneira contundente em Dublê de Corpo) que Jack deixa de ter uma relação genuína com o Cinema, se fascinando com todos os ruídos que aquela noite lhe oferece. Talvez meu plano favorito do filme seja justamente o split focus entre ele e a Coruja, ambos com olhares e ouvidos atentos à tudo ao seu redor, estabelecendo assim uma mimese entre os impulsos naturais e cinematográficos.

E quem olha quem? Por trás das árvores se escondem animais ou ameaças? Cada plano e contraplano revela algo que Jack vê e ouve, mas nunca o que pode estar vendo e ouvindo o próprio. Afinal, sabemos que é um filme de De Palma, o que torna sua exploração espacial algo que vai além do maravilhamento idílico. Como em Hitchcock, uma mancha há de atrapalhar o balanço entre o natural e o artificial, aquilo que é e aquilo que foi feito.

A natureza, representada naquele parque à noite, se torna uma só com o palco do Cinema, a única arte que combina nossos dois sentidos mais sensíveis.

OLHAR E SOM

Embora o acidente possa parecer a tal mancha, da qual Luiz Carlos Oliveira Jr. disserta em sua tese sobre Vertigo, ele nada mais é do que mais um evento nesse palco, que tem sua investigação possível apenas, justamente, pelo advento do registro.

Se nossos olhos e ouvidos registram o que vemos e ouvimos, mas logo têm esses registros afetados pela incontrolabilidade das memórias (ver O Pássaro das Plumas de Cristal), a câmera e o gravador nos permitem revisitar eventos naturais e encontrar neles aspectos que os corrompam. Muitos acidentes acontecem, e além de suas tragédias particulares, de nada interessam a quem os olha de fora. Pelo contrário, é mais provável haver uma certa repulsa na maioria das pessoas, em evitar se envolver em algo que nada pode oferecer exceto sofrimento alheio.

O elemento voyeurístico de Blow Out vem então não de uma necessidade sádica, mas do prazer voyeurístico presente no processo de criação cinematográfica. Ver, ouvir, analisar. Mais do que tudo, Jack encontra ali uma história que chama sua atenção, e como cineasta que é, precisa ir atrás dela.

Travolta é o ator perfeito para o papel por trazer esse misto de estrelismo e fracasso. Uma carreira que ascendeu de forma meteórica, mas que começava a dar sinais de queda. Nele há nada exceto impulso, não só de fazer o que ama, mas de fugir das produções rasas com as quais trabalha, e criar algo importante e de relevância. Ciente da fiscalidade que o ator traz, De Palma trabalha com uma encenação que fabrica liberdade: planos conjunto de corpo todo, atores explorando os cenários e cômodos, se movimentando por eles com uma naturalidade forçada que traz aspectos televisivos e teatrais, o palco perfeito para a figura de energia imponente que é Travolta - e que também evidencia a fragilidade de Nancy Allen, fazendo um tipo quase oposto à seu último papel como Femme Fatale.

Essa ilusão de liberdade não deixa de ser um tema recorrente em seu Cinema. Seja em uma rede de mentiras com o final já definido, ou em um corpo ao qual não se reconhece, os protagonistas de De Palma parecem fadados à um destino imutável. Mesmo que possa ir e vir, Jack está destinado ao sofrimento, uma punição, talvez injusta, para sua obsessão com aquilo que olha e ouve. O que torna De Palma, também, um mestre da ironia.

EM BUSCA DA PERFEIÇÃO

Se Antonioni fez Cinema com fotos (puxando também Chris Marker pelo caminho), De Palma faz Cinema.

Acima de tudo, Blow Out é um filme sobre o processo. Ao remontar o acidente com as imagens e sons que tem a disposição, Jack reverencia técnicos e montadores, e ao evoluir das fotos em preto e branco à um filme contínuo, faz um pertinente comentário sobre a história da sétima arte, indo do mudo, ao falado, às cores em poucos minutos. Mais interessante ainda, ao acreditar que este último formato seria o único que convenceria as pessoas, De Palma não deixa de criticar a modernidade na qual vivia, onde apenas aquilo que é uma representação verossímil da realidade importa.

Não é de se surpreender que hoje o diretor critique a preguiça da maioria dos filmes, delegando tudo para os efeitos visuais e se preocupando muito com pouco com o processo de filmagem.

E embora De Palma saiba que a perfeição é algo inatingível, poucos planos mais merecem a alcunha do que aquele onde Jack segura Sally, rodeado por fogos de artifício. Remetendo à Pacto Sinistro, De Palma denuncia a natureza cíclica da arte: o Cinema em meio às atrações, a morte como apenas um atrativo que atende às obsessões de quem a assiste, e ignora os sentimentos de quem a sofre.

Assim como todos os seus protagonistas, Jack se torna um refém da própria obsessão.

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