Crítica | Taxi Driver
SINFONIA DE AUTORIA
Em seu (menor) maior filme, Martin Scorsese exerce toda sua visão como diretor
O ensaio de Pauline Kael sobre Cidadão Kane tomou vida própria. Defendendo a natureza colaborativa do filme ao longo de sua carreira, Kael lutou contra a teoria do autor no Cinema e, mesmo que com falhas em seus argumentos, conquistou um espaço importante nas discussões e no estudo da sétima arte.
O que isso tem a ver com Taxi Driver, em específico? Em um filme muito mais abrasivo e recluso que o de Orson Welles, Travis Bickle é quase o oposto de Kane, um resto de ser humano que vive nem perambulando, mas servindo de carona para outros perambularem por uma Nova York decadente.
Mas o texto de Kael vem à tona, entre outros motivos, graças à uma coincidência macabra: o primeiro trabalho do compositor Bernard Hermann foi no filme de Welles, e o último no de Scorsese (ele morreria pouco depois de terminar sua contribuição ao filme). Não fosse ele, ambos filmes seriam, no mínimo, diferentes. Mas talvez Taxi Driver fosse quem mais sofresse.
SINFONIA DA METRÓPOLE
A grande ironia da filosofia incel quase que fundada com Taxi Driver é que ela jamais deveria ser acompanhada de beleza.
Robert De Niro, para além de sua aparência física, encarna um personagem que, desde sua cicatriz marcante nas costas, aos dentes mal escovados, cabelo mal cortado e hábitos inacreditáveis, reflete o estado de quase putrefação ao seu redor. Quando ele olha pelo espelho do carro a procura de sua nova causa, vê mais do que a si mesmo, mas não além de si mesmo.
Como pode, então, uma peça de jazz tão encantadora ser a escolhida para sua música tema? Simples à ponto de emular a genialidade de um Miles Davis, mas com uma personalidade tão marcante que toma conta de todas as cenas em que está presente, a música de Hermann se tornou daquelas trilhas inesquecíveis do Cinema. Há nela um maravilhamento pelo feio, um encantamento com a solidão e a estagnação de uma sociedade em ruínas, por conta de uma guerra feita longe de casa onde a cicatriz não sangra, mas dói.
Não seria Hermann, então, um contribuinte indispensável nem para o sucesso, mas para a essência de Taxi Driver?
Scorsese diria que sim, ao menos na mesma medida que Paul Schrader, um cineasta obcecado com aquilo que Robert Bresson tentava investigar. A sinistra vastidão do vazio interior, que permeava O Diário de Um Pároco de Aldeia e inspirou seu First Reformed, e que toma forma de Homem e Cidade em Taxi Driver. Um roteiro com uma força filosófica, que trabalha em camadas psicológicas ao mesmo tempo que investiga a podridão da superfície: o irresistível interesse pela alma de algo feio.
E não menos autor seria, então, De Niro, com sua improvisação que viria a se tornar a cena mais reproduzida do filme - e talvez de sua brilhante carreira. Abraçando o método, o ator passou semanas dirigindo um táxi por Nova York, e para usar um dos piores clichês possíveis: “desapareceu sob Travis Bickle”. Porém De Niro não era (e não é) de se entregar a muletas e histrionismos que hoje rendem Oscar. Travis Bickle é menos um fetiche e mais uma fuga, uma construção minuciosa de diferentes tipos e sensações reunidos pelo ator, um trabalho detalhista demais para ser barato e simplesmente delegado à seu talento nato. Há um desgaste visível no seu olhar, sua postura cai ao longo do filme, o peso deste coloca seus ombros pra baixo.
Rodeado de talento inestimável, um poderia acreditar que Taxi Driver é quase uma força da natureza, e não importa quem apontasse a câmera, sua essência não mudaria. E é aí que o texto de Pauline Kael e suas ramificações demonstram sua ignorância perante a natureza do Cinema.
SOBRE CINEMAS E CINEMA
Talvez no momento mais revelador do filme, Travis leva uma curiosa Cybill Shepherd em um Cinema noturno, onde assiste copiosamente à filmes pornô próximo de outros incels. É uma cena ao mesmo tempo patética e penosa, um momento onde Travis revela sua incapacidade social e como sua falta de conhecimento afeta a maneira como demonstra suas intenções - talvez nunca ruins. De certo modo, um completo oposto de Scorsese - mas não do Scorsese que vemos sentado em uma mureta, enfeitiçado pela mesma atriz e que cenas depois jura a morte de sua esposa por traí-lo com um negro.
Apesar dos apesares, todos os elementos que compõem Taxi Driver apenas ajudam seu autor a tirar de si o filme que precisava fazer. Quase um manifesto, mas também uma limpeza espiritual em forma de dádiva cinematográfica. O jovem Scorsese que cresceu nas ruas de Nova York, se exorcizando dos anos de intoxicação causados pela capital do mundo.
E Scorsese, o diretor, é o oposto da ignorância. Poucos sabem tanto e nenhum parece saber mais do que o baixinho de sobrancelhas grossas, um mestre, mas também um eterno estudante e admirador da arte que o cativou. Taxi Driver, com toda sua originalidade que inspirou 50 anos de história do Cinema, é uma coleção de fragmentos. Nela, Scorsese executa dois filmes diferentes, e cria algo que hoje é devidamente reconhecido como um dos grandes marcos de seu meio.
Há a representação do roteiro de Paul Schrader, uma narrativa de ascensão e queda, movida pela inevitabilidade da auto-destruição, dosada de maneira que se tornaria padrão em seus filmes a partir dali. Talvez o aspecto que mais me atraia em todo o filme é como, parasse ele em meia hora, e teríamos o começo de uma das melhores comédias românticas do Cinema. Outro diretor talvez fizesse algo insosso como o Coringa, ou caísse em um território tão auto-indulgente que o filme seria intragável. Scorsese se apaixona por cada aresta do que filma, e nos leva no caminho.
E por mais hipnótica que seja, a música de Hermann não pode jamais ser dissociada do filme-montagem feito por Scorsese. Uma sinfonia sonora e imagética, devidamente inspirada na Nouvelle Vague - e principalmente Godard e Acossado -, que não conta histórias, mas as observa enquanto busca sensações - remetendo também à Um Homem com uma Câmera, de Vertov. A representação da angústia de um jovem perdido (ala Nicholas Ray), que perambula pela periferia absorvendo fragmentos de vidas por si fragmentadas ao seu redor. Quando Scorsese e De Niro param em frente ao apartamento e vemos silhuetas na janela, ele reverte Janela Indiscreta. O problema é que, do lado de fora, vemos as imperfeições além da superfície, isso se conseguirmos ver qualquer coisa em meio à fumaça.
Um roteiro que surgiu de experiências reais e auto-biográficas por Paul Schrader, pontuado pela última dança de Bernard Hermann, e capitalizado por um ator no limiar entre a mediocridade e o estrelato, mas que toma forma pela necessidade de Scorsese de mostrar esse estado quase inanimado que o Cinema proporciona. Quando vemos Travis Bickle, é como se olhássemos em uma lupa, o destacando de uma experiência quase onírica, afetada e hipnotizante, onde o todo é amórfico e opressivo, mas o indivíduo é mundano e frágil.
Taxi Driver é um clássico incontestável e, ao meu ver, o grande filme de Martin Scorsese. Não apenas por sua maestria, mas por como reforça a autoria de um homem que, em suma, reproduz sua visão de mundo pelas imagens que filma. Schrader escreveu o roteiro, Hermann compôs a música, De Niro encenou.