Crítica | Crimes do Futuro

METAMORFOSE DISTÓPICA

Novo filme de Cronenberg é uma síntese de suas idealizações como diretor


Tendo assistido apenas cinco filmes de David Cronenberg (A Mosca, Scanners, Videodrome, Marcas da Violência e Cosmópolis), é bem possível que tenha perdido algumas das conexões que costurem seu Cinema até chegar em Crimes do Futuro.

O que não me impede de estipular a ideia de que, de certa forma, seu novo filme estabelece uma relação entre o Body Horror que o tornou conhecido e seus projetos mais recentes, que se expressam mais por seu formalismo e contém seu drama de maneira esquisita, mas nunca idiossincrática a ponto de soar como distorções completas da realidade.

Se antes eram seres humanos se fundindo com a tecnologia em filmes que se encaixavam no movimento natural do Cinema dos anos 80, agora são homens tentando fugir do caos do mundo moderno e lidando com os fantasmas dentro de si próprios, utilizando a tecnologia a sua disposição de maneira que o afasta ainda mais de seus contemporâneos.

O FIM DO CORPO

Assim, Crimes do Futuro definitivamente conversa com todas essas facetas: seres humanos “evoluem” ao ponto de que a única maneira de se ter prazer é com a dor de uma cirurgia de remoção de órgãos, em um mundo tão corrosivo que caminhar por ele pela noite parece mais perigoso do que enfrentar um vilão canastrão em um duelo de encaradas, ou um passado de relações com a máfia.

E aí a habilidade de Cronenberg em assimilar todas as suas referências em uma mise-en-scène própria: Expressionismo Alemão, é claro, mas também o mundo de quadros escuros e sufocantes de Pedro Costa, um mundo construído digitalmente para parecer quase como uma paródia de si mesmo. Auto-ironia presente também na encenação, pois não é possível que Viggo Mortensen tenha conseguido terminar qualquer take sem dar um risadão, atuando como se sentisse dor ao existir, enquanto a estonteante Lea Seydoux sensualiza ao exagero cada movimento e expressão sua.

Isto é, “sensualiza”, pois a iluminação que gera sombras pontudas faz o possível para que as feições humanas sejam distorcidas - até que a maquiagem finalmente as distorce fisicamente -, revertendo Kristen Stewart para sua forma vampiresca, na que acho que é minha atuação preferida da atriz até hoje. A maneira como ela parece lutar com cada palavra que diz comunica também sobre as relações desse mundo, cada vez mais apenas desculpas para que duas criaturas possam deitar juntas… e cortar umas às outras.

O Body Horror assume um papel quase bonito nesse sentido, como se fosse o último escape de corpos em putrefação, e por mais nojento que seja ver as tripas saindo, o filme todo se desenha para tornar cada um desses momentos em um ritual próprio de fascinação. Lembra com certeza A Casa Que Jack Construiu ao vangloriar a violência gráfica, mas se aquele era uma comédia, Cronenberg utiliza da ironia para aceitar o absurdo do romance que conta, de forma semelhante também ao que fez o remake de Suspiria em um drama político disfarçado de Body Horror Sobrenatural.

Mas mesmo que seja um romance, é mais apaixonado por seus métodos do que por suas pessoas, entendendo que essas não são nada exceto veículos. É o fim do corpo como recipiente de humanidade, e sua potencialização como meio para um fim.

SOBRE INSETOS E HUMANOS

Muito para a inveja de outros diretores que flertavam com o niilismo, Cronenberg não pode nunca ser acusado de ser um otimista.

Desde a maneira como dispõe seus atores nos quadros - para os cantos, deslocados, em movimentos de câmera que, quando deitados, parecem dar à seus corpos proporções anormais -, à ausência absoluta de um cerne de lado bom da vida, Cronenberg acredita apenas no discurso que propõe. De que, a cada filme, caminhamos para o fim de nossa humanidade pessoal e coletiva, nos aproximando de criaturas Kafkanianas que sim, atingem um estado elevado de entendimento e apreciação, mas deixam de lado aquilo que nos difere dos insetos dos quais tanto gosta.

No momento em que aceitamos a natureza parasitária da tecnologia, aceitamos também nossa metamorfose em qualquer outra coisa, que não os humanos que éramos até agora pouco. Não que Crimes do Futuro seja o grande filme de sua grande carreira, mas possivelmente é o resultado de tantos experimentos idiossincráticos que refletem a visão pessimista, mas que não deixa de admirar essa decadência a qual filma, de uma das mentes mais piradas e fascinantes que o Cinema produziu.

8.6

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