Crítica | O Pássaro das Plumas de Cristal
enquadrando o espectador
Em filme alegórico e referencial, Dario Argento sequestra o ato de olhar
É impressionante como a pintura e o Cinema, mais que outras artes, se cruzam de maneira que fica até difícil determinar onde acaba um e começa o outro.
Nighthawks (1941), obra prima de Edward Hopper, é dos quadros mais influentes no Cinema Moderno, sendo peça fundamental do Noir dos anos 40, e encontrando eco em filmes distintos: do CyberPunk de Blade Runner (1982), ao drama de singularidades coletivas de Toda Uma Noite (1982), à este Giallo de Dario Argento.
Mas se os filmes de Ridley Scott e Chantal Akerman puxam, respectivamente, o estado de espírito e o espaço físico da pintura para suas obras, Argento obviamente a mancha com respingos de sangue: seu protagonista vê uma janela (na direção contrária da pintura de Hopper) e, nela, algo que o faz entrar em um mundo antes enquadrado distante do dele.
E o que seria o Cinema se não uma janela, na qual escolhemos ou não entrar e/ou observar o que ali acontece. No Cinema Clássico, veríamos tudo acontecendo como alguém de fora, passivo em relação àqueles acontecimentos, mas Argento é um dos maiores propulsores da Modernidade, e viola constantemente não apenas o olhar - nosso e do protagonista -, mas até mesmo o que é visto. Ao longo de todo o filme, o escritor norte-americano, Sam Dalmas, ressignifica o que viu, tenta remontar na memória um quadro único que existe apenas para ele em busca de detalhes que possam ajudá-lo a sair da armadilha da qual entrou espontaneamente.
Ao ser preso entre as paredes de vidro, Sam se torna objeto de vitrine assim como o crime que testemunhou, e a partir dali está envolvido diretamente em uma janela a qual não deveria pertencer.
Assim, começamos a examinar essas memórias junto a ele, da mesma maneira que ainda se discutem os detalhes que tornam Nighthawks uma pintura, por mais que simples, enigmática. De acordo com a maneira como enxergamos, aquelas pessoas podem ir para caminhos distintos, mas o quadro segue sempre sendo o mesmo. Como estamos falando de Cinema - e, principalmente, de Argento - é claro que as peças se encaixariam para revelar algo, e acertando ou não (eu acertei, por um milagre), o processo se torna divertido e tenso na mesma medida.
Felizmente, Argento se prende menos nas ideias piradas dele - que ganharam vida com O Gato de Nove Caudas e Quatro Moscas em Veludo Cinza -, e conduz o que é facilmente um de seus roteiros mais sóbrios: os demais elementos do Giallo (o plot twist, os assassinatos, as ameaças) estão presentes, é claro, mas ele não permite que o texto inclua qualquer teoria científica que entra mais pro ramo da comédia do que da ficção - que eu adoro, mas aquela história de cromossomos XY do Gato é demais. Mas assim como nos outros filmes da trilogia, acho que o animal acaba sendo só uma questão de título e tendo menos destaque do que poderia, ainda mais pra um diretor tão estiloso, não abusar mais de algo tão visual como um pássaro de plumas de cristal é um desperdício.
Embora menos estilizado que seus trabalhos mais conhecidos (Suspiria, Profondo Rosso) e talvez por isso até menos marcante (por melhor que ele seja, se é pra ser suspense sóbrio, Kurosawa, Petzold e Fincher varrem o chão com ele), O Pássaro das Plumas de Cristal é dos filmes que melhor compreendem e se debruçam sobre Cinema, além de ser uma janela de entrada perfeita para o trabalho de um dos diretores mais apaixonados pelo que faz.
A “simplicidade" maior da narrativa e mesmo do visual também remetem ao trabalho de Hopper, no qual um jornal escondido ao lado de um homem solitário pode trazer toda a preocupação com a guerra que acontece fora daquele mundo específico. E o mesmo pode ser aplicado para Sam, que viaja com a namorada para a Itália, e logo se vê preso entre o país da pizza (que fora aliado da Alemanha) e o do fast-food. Se ele só conseguisse voltar pra casa, poderia fugir, mas aí entra também a necessidade Hitchcockiana de fugir do cotidiano encontrando nele algo de errado.