Crítica | Spotlight

Há, acredito, uma sensação superior ao próprio medo em sua própria escala.

Se o barulho na cozinha à noite é quase sempre mais assustador do que o causa, há algo de muito mais sinistro em saber que, talvez por escolha, tenhamos ignorado uma sinfonia de horror sendo tocada tão perto de cada um de nós. “Spotlight” é genial, justamente, pois ascende holofotes em verdades que preferimos ignorar e/ou esquecer.

Baseado na equipe de investigação do Boston Globe responsável por trazer a tona o escândalo de abuso sexual da igreja católica na cidade de Boston em 2003, que acarretaria descobertas semelhantes mundo afora, o filme de Tom McCarthy se prova mais eficaz em provocar apreensão e horror que qualquer palhaço sanguinário, espírito revoltado ou bruxa satânica, justamente por combinar muitas das tendências que constroem o cinema de Terror em uma figura que deveria, na maioria das vezes, combater estes muitos medos.

É importante ressaltar que, nas mãos do diretor errado, com o grupo de pessoas erradas, “Spotlight” poderia se tornar pretensioso e óbvio, mas feito com o mesmo cuidado apresentados pelo grupo por trás destas revelações, se mostra um retrato tão realista que é como se o segurássemos em nossas mãos, relembrando de coisas que podemos ter visto, ouvido ou sentido, e preferimos ignorar e/ou esquecer (sim, reutilizei a expressão) .

McCarthy tem precisão cirúrgica em tratar de todas as nuances levantadas pelo roteiro dele e de Josh Singer, mostrando cuidado e delicadeza - muito graças à performance milimetricamente calculada de Rachel McAdams que tem o papel de realizar a maioria das entrevistas - em retratar como cada vítima respondeu e ainda responde aos abusos sofridos, sem a necessidade sádica de torná-las caricaturas. Ele é eficaz, também, em orquestrar seu talentosíssimo elenco para que não tentassem ofuscar uns aos outros ou a importância e relevância da história contada, algo que todos respondem com sutileza ao construir seus personagens como seres humanos que reagem gradativamente ao peso colocado em seus ombros. É por isso que quando o personagem de Mark Ruffalo tem um rompante o impacto emocional surge tão devastador. Perceba, também, como a reação de todos eles à rochas maiores que podem mover retratam a realidade, sendo que todos sentam, respiram e coçam as cabeças.

Os aspectos técnicos reforçam o objetivo geral de McCarthy, de não romantizar nenhum dos acontecimentos. A edição torna a narrativa, essencialmente burocrática assim como qualquer investigação jornalística envolvendo instituições e não pessoas em si, dinâmica e fácil de se acompanhar, se aliando à composição visual do talentoso Masanobu Takayanagi, que remete também ao cinema asiático ao apresentar ambientes aconchegantes - com uma paleta de cores elegante e neutra -, mesmo que claustrofóbicos e ameaçadores quando necessário. Em uma tomada, o personagem de Brian James percebe a proximidade de uma igreja com sua casa, em outras, vemos igrejas próximas à parquinhos com brinquedos infantis, tudo com uma sugestividade tão sombria que deve provocar calafrios e te fazer avaliar, mentalmente, os arredores de sua própria casa. McCarthy sabe que o impacto das revelações é forte o suficiente para falar por si só, o que explica também a trilha de Howard Shore, apostando música clássica, com tons intrigantes e de descoberta, sem apelar para o grandiosismo e fantasia em obras passadas do músico.

Por conta do trabalho minucioso em fazer com que todos os seus elementos culminassem no momento certo, quando vemos aquele grupo reagindo ao número real de casos na própria cidade onde moram é como se apontássemos uma lupa para nossa própria comunidade. Repare, quantas igrejas são próximas à creches e parques? Ou pior, quantas escolas no Brasil são regidas por associações ligadas à Igreja Católica? É curioso também que um filme tão sútil como este aposte por colocar um de seus clímax justo no Natal, época onde mundialmente o cristianismo é celebrado, quase uma piada de péssimo mal gosto que aponta o dedo diretamente na nossa cara. Afinal, o maior trunfo de “Spotlight” é, na verdade, criminalizar o sistema sem atacar as crenças, pois o problema não é em o que você acredita, mas como você acredita.

Mais do que qualquer filme de terror em uma década onde os mesmos parecem ter reencontrado, de certa forma, seu brilho, “Spotlight” é aterrorizante.

10

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