Crítica | Blue Girl
Filme assistido durante a cobertura do Brasilia International Film Festival (BIFF) de 2020, disponibilizado online pela organização devido a pandemia do Covid-19.
COMO ENTENDER A SITUAÇÃO DOS CURDOS PARA ALÉM DA GUERRA?
E por que “Blue Girl” contribui com isso?
Os curdos são considerados a maior nação sem estado no mundo, isso porque seus mais de 35 milhões de representantes estão espalhados por Turquia, Síria, Iraque e Irã. Os maiores desafios para entender estes povos atualmente são suas localizações além das fronteiras e a condição em que vivem nesses países: na Turquia os curdos são perseguidos; na Síria são linha de frente na guerra contra o Estado Islâmico; no Iraque são chave na disputa política que dura mais de 10 anos no país.
No Irã, os curdos têm uma vida um pouco mais tranquila, mesmo sendo um Estado autoritário que persegue opositores e que também se opõem ao capitalismo do ocidente dificultando a entrada, fora o fato de a população de lá ser mais espalhada, o que torna mais difícil o acesso às informações sobre o Curdistão Iraniano que, por outro lado, tem potencial de ser a melhor abordagem no mundo sobre o tema.
“Blue Girl”, é nesse sentido, uma colaboração essencial, ao trazer a relação da nação com a Copa do Mundo. A outra ponta do filme é a relação das meninas da vila em que o filme se passa com o futebol, colocando uma delas como narradora do filme que aponta o papel das mulheres naquela sociedade e no Irã. País que é liderado por uma vertente conservadora do islamismo xiita em que apesar de mulheres terem direitos políticos, têm pouquíssima liberdade social. Nos últimos anos o direito de frequentar estádios de futebol tensionou protestos por estádios do país inteiro, que incluiu boicote de jogadores iranianos à seleção nacional. Essa discussão entrou em campo a partir da morte de uma ativista torcedora do Esteghlal que foi presa após tentar ir assistir a um jogo do seu time, os torcedores do clube são apelidados de “os azuis”, e a ativista Sahar Khodayari foi então chamada de “Blue Girl”.
A apresentação de uma vila curda no interior do Irã em que todos amam futebol é instigante, porque enquanto a narradora Hanna vai apresentando as pessoas que habitam aquele lugar ela conta qual seleção elas amam. França, Alemanha, Japão, Colômbia, ela, particularmente, torce pela Itália. Claro que com a globalização do futebol é cada vez mais comum pessoas espalhadas pelo mundo torcerem por seleções e times de lugares distantes, mas aqui tem um atenuante a essa realidade: não existe uma seleção curda. É uma antiga reivindicação do Estado curdo, mas ele não existe e para eles sobra torcer pelos mais diferentes países.
Um dos motivos da causa ser tão simpática ao ocidente certamente é a organização democrática que esse povo tem demonstrado por onde está, e esse valor é demarcado no filme de diversas maneiras: a vila é pequena e está em uma região montanhosa, o que torna difícil para as crianças jogar futebol e causa conflitos com os moradores por causa do barulho, rapidamente as crianças se reúnem e decidem procurar uma alternativa. A organização entre os jovens para construir seu campo de futebol traz os grandes momentos do longa, em que todos eles trabalham lado a lado e tomam as decisões coletivamente. Apesar disso, a desigualdade de gênero nessa vila é um fator marcante (a situação das mulheres curdas é a principal variante entre Síria, Turquia e Irã, Iraque) e a narradora faz questão de nos contar várias vezes a diferença de tratamento que ela e suas amigas recebem dos meninos. Mesmo que tenham trabalhado tanto quanto eles para construir o campo, elas sabem que não vão poder jogar. Ela também ressalta que ali, no campo deles, as mulheres são autorizadas a assistir futebol, ao contrário do resto do país.
Entrando no conteúdo da obra em si, o que é muito difícil porque há pouquíssimas informações sobre a película na internet, parto exclusivamente dos meus takes do filme. A primeira discussão é o conceito de documentário, porque “Blue Girl” se apresenta como e é um documentário. No primeiro parágrafo falei que o Irã é fechado à cultura ocidental, logo o fazer cinematográfico iraniano, tão aclamado que é, não parte necessariamente das mesmas regras de Hollywood que estamos acostumados. Filmes como “Persépolis” e “Taxi Teerã” são classificados como documentário mesmo que a primeira vista se encaixariam no que as regras que estamos acostumados consideram ficção.
No caso de “Blue Girl”, não há entrevistas, ou mesmo retrata uma história factual*, as cenas são enquadradas e encenadas, mas é um filme que fala essencialmente sobre a realidade. Não é coincidência que a protagonista é chamada de “Blue Girl”, apaixonada por futebol e ciente do motivo de não ter direitos no lugar onde vive, ela representa essencialmente a ativista que se matou para mulheres poderem frequentar estádios.
Ao final do filme, as crianças têm um novo time para torcer, o seu próprio. Para eles, é o time que simboliza todos os países e jogadores que amam, por isso decoram o seu campo com bandeiras dos 32 países que jogaram a Copa do Mundo de 2018 e mais fotos dos seus ídolos como Pelé, Maradona, Mané e Salah, que também são referenciados no seu jogo. Sem uniformes, eles escrevem nas costas seus números e nomes como Mbape e Kroos. Além das histórias o filme traz méritos como a fotografia perfeita, que aproveita as paisagens excepcionais do local e mistura com closes lindos das crianças e ousadas mudanças de foco que revelam as meninas em plano de fundo, demonstrando a relação que “Blue Girl” aponta. Além disso, as cores vivas que os personagens usam em contraste com o cinza da cidade e o marrom e verde das montanhas trazem verdadeiras pinturas. O roteiro é poético e rima com as imagens geradas pela câmera vistas através dos olhos das crianças.
É fácil para mim gostar de “Blue Girl”, ele aperta todos meus botões: Estado curdo, Oriente médio, Copa do Mundo e cinema. O que torna essa crítica um tanto glorificadora. Eu entendo quem considerou o filme burocrático, mas, para mim, o que há de mais incrível são os momentos de poucos diálogos em que o grupo se reúne para assistir os jogos da Copa do Mundo ou que tomam banho em um laguinho na montanha. São cenas silenciosas, mas falam tanto sobre um povo que desde sempre reivindica o direito de auto determinação previsto desde 1941 e que, além disso ser negado, se vê numa situação violenta onde quer que esteja. Uma experiência possível em um país tão fechado para denunciar diversos temas relacionados à população curda e às mulheres no país, enquanto documenta a real paixão pelo futebol que esse povo notadamente conserva onde está presente.
Por fim, é uma representação positiva que funciona como uma luz na realidade que esse grupo enfrenta. Concluo com versos da música “Revolution”, da cantora de origem curda-iraniana Helly Luv: “Ao redor do mundo não tenham medo, Venha junto deixe que eles saibam que estamos bem aqui. Queimando nós temos o fogo, poder que você não pode nos negar, Escuridão nunca irá nos levar. Vida longa para todas as nações”.
8.5
*em pesquisas no Google sobre a história da vila curda que construiu um campo de futebol não foram encontrados resultados relacionados.