Festival de Cinema de Gramado 2020 | Dia 2
O Outra Hora está cobrindo o 48º Festival de Cinema de Gramado que ocorre entre os dias 18 e 26 de Setembro de 2020. Com um texto por dia expressando nossas principais opiniões sobre os filmes da noite anterior. O Festival é exibido todos dias às 20 horas no Canal Brasil, enquanto a Mostra Gaúcha ocorre no Globosat Play. Entrevistas e análises vão ser parte da nossa cobertura, acompanhe nossas redes para saber mais.
uma noite que ficou na média.
19/09/2020 marcou a segunda noite do 48º Festival de Cinema de Gramado e queria ter algo mais para falar além da normalidade que tivemos
Não levem a mal… tivemos bons filmes, mas nada que surpreenda a essa altura, quer dizer, por melhor que “Inabitável” seja, o cinema pernambucano cansa de dar show na Mostra de Curta-Metragem, a ironia do humor gaúcho como vimos em “Subsolo” também é um padrão. E a disparidade de um filme brasileiro dando um passo maior que a perna e se perdendo no emaranhado de uma história completa seguido de um filme Latino com uma premissa simples acertando em cheio na dose de sensibilidade e pé no chão, especialmente retratando um lugar remoto no interior de um país, também não chega a ser um fenômeno desconhecido.
To quase fixando o parágrafo sobre a qualidade do som bizarra nos filmes nacionais, mas “Todos os Mortos” conseguiu se destacar nesse quesito, diálogos inteiros ináudiveis, o que com certeza atrapalhou e muito minha impressão do filme.
Destaque da noite:
Vou ter que destacar mais uma atuação, Luciana Souza em “Inabitável”, que talento, quanta sensibilidade.
Os Filmes:
Curta-Metragem Brasileiro: “Inabitável” (2020), dirigido por Matheus Farias e Enock Carvalho (PE).
Sinopse: Pouco antes da pandemia, o mundo experimenta um fenômeno nunca antes visto.
Marilene procura por sua filha Roberta, uma mulher trans que está desaparecida. Enquanto corre contra o tempo, ela descobre uma esperança para o futuro.
Crítica: Vá lá, apesar de ser já o terceiro (de quatro) curtas com premissas fantasiosas, os outros dois filmes dialogaram muito com a experimentação da fábula ser uma forma de escapismo, nada disso se aplica à potência que é “Inabitável”. Quantas mães Luciana Souza representa? O Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo inteiro, então não são poucas mães. A TV com som no plano de fundo nos avisa que são casos no Brasil inteiro de desaparecimentos misteriosos ocorrendo e por mais esperança que carregamos junto com Marilene não paramos de esperar pelo pior, aí a fantasia entra como uma solução de roteiro, que sensibiliza ainda mais a história.
Curta-Metragem Brasileiro: “Subsolo” (2020), dirigido por Erica Maradona e Otto Guerra (RS).
Sinopse: Três amigos frequentam diariamente a mesma academia em busca de seus ideais de corpos. Apesar de assíduos, convivem com os frustrantes deslizes que acontecem longe das esteiras, fazendo girar as engrenagens de um ciclo interminável.
Crítica: Único gaúcho selecionado para a mostra nacional em 2020, “Subsolo” é uma crítica muito bem humorada ao capitalismo. Brincando tanto com o nosso comportamente, nossa busca por uma estética pessoal que não é nada além de uma desculpa para nos desculparmos por eventuais deslizes no comportamento até a ponta em que o sistema nos engana sobre a origem do que comemos. Tem piadas hilárias, como a personagem que posta uma foto com a amiga na academia alegando precisas de mais “olho no olho” sem olhar no olho de ninguém.
Longa-Metragem Brasileiro: “Todos os Mortos” (2020), dirigido por Caetano Gotardo e Marco Dutra (SP)
Sinopse: Na São Paulo de 1899, entre o passado conturbado do Brasil e seu presente fraturado, as mulheres da família Soares tentam se agarrar ao que resta de seus privilégios. E Iná Nascimento, que fora escravizada pelos Soares anos antes, luta para reunir seus entes queridos enquanto procura dar vazão a suas próprias vontades.
Crítica: A cidade de São Paulo na virada do Século é fascinante momento fundamental da trasnformação entre um reduto de fazendas, com barões e baronesas para a mais metropolitana cidade do Brasil. “Todos os Mortos” vai num ponto fundamental: essa cidade cresceu pelas mãos de seres humanos escravizados que não deveriam ser esquecidas/os. A construção dessa tese se dá nas histórias enteleçadas de uma família rica de cafeicultores que perde suas terras, não lembro se menciona diretamente, mas o meu palpite é que essa acontece em consequência da abolição da escravatura em 1888. A outra ponta é a luta por achar aqueles que não foram permitidos terem família. As duas irmãs Soares se esforçam para manter não só os privilégios, mas a ilusão de que há digno em sua família, com a mãe doente e a morte de Josefina (matriarca da família nascimento e escravizada da família Soares), elas tentam fazer com que Iná, liberta, volte a trabalhar na casa. A crueldade com que fora tratada não é evidenciada ao longo da trama apesar de não precisarmos nos esforçar muito para entender um pouco dessa relação.
Se destaca a mistura do visual paulistano remontando o Século XIX com a urbanidade de 2019.
Um motivo para isso é que o roteiro funciona como uma série infinita de exposições, não sei se achava um risco a trama ou fundamental que todo mundo entendesse a mensagem, o fato é que há pouco deixado para interpretação, e mesmo assim boa parte do enredo não fica nítido. E aí o problema de som que comentei toma proporções imensas, não é exagero nenhum falar que teve cena que não ouvi o que estava sendo dito, nenhuma frase, a mixagem de sons no fundo foi exagerada por algum motivo, seja qual for, compremeteu bastante a história que já não era fácil de ser contada.
Longa-Metragem Estrangeiro: “La Frontera” (2019), dirigido por David David (Colômbia)
Sinopse: Em meio a uma crise de fronteira entre Colômbia e Venezuela, uma jovem indígena vive com seu marido e seu irmão, roubando viajantes que seguem por trilhas, até que o destino a empurra para o limite de sua ilusão, fazendo-a se perder em sonhos misteriosos.
Crítica: Como eu amo a América Latina.
Capaz de misturar uma grave situação política que entristece nosso continente com a história de uma jovem, “La Frontera” funciona em muitas camadas simultâneas. Dianita está grávida, provavelmente hábita esse espaço a sua vida inteira, mesmo que só ela e um irmão (de algo como dez filhos) se mantiveram ali, ela nitidamente não quer abondar aquele espaço, com todas dificuldades que isso significa. Logo no começo seu marido e irmão são assassinados e ela é deixada a própria sorte, sobrando ao destino que lhe ajudasse e é o que acontece, de um jeito ou de outro. Talvez porque seja colombiano, “Cem Anos de Solidão” me veio inúmeras vezes a cabeça, em especial os dois últimos capítulos, em que Aureliano Babilônia teima para ficar em Macondo e criar o filho de Amaranta Úrsula, o último Aureliano, mesmo que não exista nada além de tragédia para ele lá. Essa rima seria reforçada por uma cena que não vou detalhar por causa de spoilers em que formigas aparecem em cima da barriga grávida de Diana.
A fronteira fecha após um conflito armado entre paramilitares colombianos com soldados da Guarda Nacional Venezuelana e a casa de Dianita se agita. Um tiroteio seguido da aparição de um misterioso homem com grave lesão, visitas do exército colombiano e a chegada de Chalis, venezuelana que tenta cruzar a fronteira de volta ao seu país natal e ao ser assaltada busca refúgio com a protagonista. Há mistura de elementos místicos e psicológicos com a dura limite da realidade que vive a protagonista, o que não faz a narrativa, nem por um segundo, se perder ou deixar de ser orgânica, inclusive alternando momentos bem-humorados (qualquer um com Chalis em cena) e muito trágicos. A performance de Daylin Vega Moreno como Dianita me lembra a de Yalitza Aparicio em “Roma”, as duas protagonistas têm como característica principal a passividade misturada com altas doses de “se-virol”, a diferença é que ao fim do filme a personagem de “La Frontera” está mais preparada para tomar seu futuro nas próprias mãos.