Festival de Cinema de Gramado 2020 | Dia 3

O Outra Hora está cobrindo o 48º Festival de Cinema de Gramado que ocorre entre os dias 18 e 26 de Setembro de 2020. Com um texto por dia expressando nossas principais opiniões sobre os filmes da noite anterior. O Festival é exibido todos dias às 20 horas no Canal Brasil, enquanto a Mostra Gaúcha ocorre no Globosat Play. Entrevistas e análises vão ser parte da nossa cobertura, acompanhe nossas redes para saber mais.


a TERCEIRA NOITE do festival - dita noite carioca - FICOU MARCADA POR IDeIAS maravilhosas NÃO TÃO BEM EXECUTADAS.

Há de se destacar, antes de qualquer coisa, a ousadia estética dos 4 filmes do terceiro dia, pois ao final da exibição resta claro que, mais que atuações ou a escrita, a cinematografia foi quem conversou com o espectador.

Entretanto o grande problema, que permeou os 4 projetos apresentados, se constrói na perda de identidade própria atravessada por pretensões conceituais demasiadamente exageradas. A minha sensação foi que incansavelmente os criadores dos filmes apresentados no domingo precisavam demonstrar mais singularidade do que apresentar coesão.


Destaque da noite:

O destaque da 3ª noite fica nas mãos da fotografia do filme estrangeiro Dias de Inverno. Fria e apática mas ainda assim grandiosa, mais do que as atuações ou o desenrolar da trama propriamente dita é o recurso que mais se impõe conversando com quem assiste, traduzindo perfeitamente a ideia da história mesmo que elas peque ao desenrolar sua narrativa.


Os Filmes:

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Curta-Metragem Brasileiro:  “Atordoado, eu permaneço atento”, 2020 – (RJ), de Henrique Amud e Lucas H. Rossi dos Santos

Sinopse: O jornalista Dermi Azevedo nunca parou de lutar pelos direitos humanos e agora, três décadas após o fim da ditadura, assiste ao retorno das práticas daquela época.

Crítica: O título do filme é nomeado em razão de um verso de Chico Buarque e Gilberto Gil, retirado de uma das músicas mais lembradas quando falamos de ditadura no Brasil. “Cálice”, ou “Cale-se” metaforicamente ambígua e propositalmente contida, mas com uma força enorme em cada palavra, aqui se associa muito bem com a história de Dermi Azevedo, que durante a carreira ferrenhamente lutou pelos direitos humanos e foi constantemente oprimido. O relato do jornalista é curto e impactante, cru o suficiente pra causar mal-estar perante as barbáries oriundas da ditadura. Originalmente, as opções visuais não haviam me convencido sobre sua eficácia dentro do contexto do curta - na verdade acreditei que tirava força do relato exposto. Acontece que, quanto mais penso sobre, mais faz sentido a abstração apresentada como modo de demonstrar o atordoamento que todos os traumas causaram nas memórias do Jornalista e ainda assim mostrar que, mesmo assombradas elas ainda existem.

Não tenho rancor, tenho memória.

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Curta-Metragem Brasileiro: Blackout (RJ), 2020 - (RJ) de Rossandra Leone.

Sinopse: Em um Rio de Janeiro futurista nada parece ter mudado. Abuso de autoridade, violações de direitos, racismo e machismo ainda dão o tom da relação do poder público com a favela. Dessa vez, entretanto, algo parece estar para mudar.

Crítica: Estilisticamente, Blackout é ótimo. A estética “Afrofuturista” é muito funcional ao passo que expõe a tendência imutável do padrão racista da nossa sociedade. Nesse sentido, a premissa é realmente atrativa e a fluidez da história na primeira metade engaja facilmente. O problema da segunda metade do filme é o quão expositivo os diálogos são ao passo que a distopia apresentada perde totalmente sua plausibilidade, possuindo mais força na ideia originária do que em como ela é de fato executada e concluída.


Longa-Metragem Brasileiro: Um Animal Amarelo (RJ), 2020, de Felipe Bragança

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Sinopse: Fernando, 33, um cineasta brasileiro falido, mergulha em uma jornada entre Brasil, Portugal e Moçambique, em busca de pistas sobre o passado violento de seu avô. Uma tragicômica fábula tropical.

Crítica: A sensação que ficou logo após “Um Animal Amarelo” acabar, e cada vez mais se perpetua em mim, depois de tentar digerir a bagunça proposital de Felipe Bragança, infelizmente é de indiferença. A ideia de que este é um filme de intenções ousadas que se perde em seu próprio conceito não se desprende de mim. O propósito de criar um protagonista essencialmente insuportável a fim de trazer destaque pra história metalinguística (afinal, acredito estarmos vendo o filme que o protagonista deseja fazer) mais do que qualquer coisa funcionaria se a mensagem mor do filme não parecesse tão presunçosa.

O claro propósito de explorar as origens do nosso ser, como brasileiro e como ser humano, tangendo sobre desdobramentos e efeitos colonialistas, além do inato egoísmo explorador do branco obcecado e ambicioso tem seus momentos eficazes mas nada que se sobressaia aos momentos exacerbadamente rasos da história.

O inevitável reflexo e destruição, tanto da cultura quanto da estabilidade local e das pessoas antes da exploração do dito “homem médio” (alguém sem beleza ou singularidade alguma) não é seguido de nenhuma sensação, nem mesmo desconforto. “O país mergulha em um estado febril de amnésia e dor”, Moçambique aparece completamente destruída e Fernando usa do desequilíbrio e mal causados pra contar uma história de interesse próprio, a qual, ao final das duas horas de filme - ou durante todo ele, na verdade - não nos causa nada. O uso de fantasia não acrescenta muito à narrativa assim como todos elementos técnicos, apesar de serem extremamente vistosos e requintados. Isso soa meio que um padrão aqui: Um conjunto de pontos isolados ótimos que não contribuem pra totalidade da obra. Um tributo ao cinema moderno, passagens históricas que deveriam ressoar fortemente (mais do que nunca!) no modelo de sociedade em que vivemos e um estudo do ser humano movido por suas ambições e suas consequências . Tudo isso é observado e nada se enfatiza.


Longa-Metragem Estrangeiro: Dias de invierno (México), 2020, de Jaiziel Hernández

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Sinopse: Nestor quer ir morar com a irmã nos Estados Unidos. No entanto, ele é o único que mora com a mãe e não pode deixá-la sozinha.

Crítica: Acabou por ser um respiro de tranquilidade.

Não é fácil criar um filme sobre introspecção verdadeiramente impactante, e dar vida e conservar certo nível de melancolia durante uma história depende de muitos fatores - legitimidade de sensações, palpabilidade das pessoas e situações, e por ai seguimos a lista. Precisamos de coisas reais para nos agarrar.

Eis que depois de uma noite intensa, com propostas engenhosas carregadas de certa excentricidade, “Dias de Invierno” explora a simplicidade e opacidade de personagens cerceados pelo contexto social mexicano em que vivem. Ao vender e se opor a ideia do “sonho americano”, salientando que “nem tudo na vida se trata de buscar a felicidade” o filme cria essa contradição interessante. Mesmo dentro de suas sufocantes frustrações individuais a busca incessante por felicidade e distanciamento de um passado deprimido é permanente.

Porém, mesmo com diversos aspectos atrativos, o roteiro possui claros problemas de desenvolvimento e isso acaba prejudicando tanto os personagens como as atuações. Não há brilho em essencialmente nenhum dos aspectos mais humanamente relacionáveis, tampouco na analogia que dita a trajetória do protagonista, e isso fica claro quando o momento final de catarse dele não nos proporciona comoção alguma (diferente das outras duas), sendo a personagem de Leticia Hujira (sua mãe) genuinamente mais atrativa.

Felizmente, já mencionado como destaque da noite, a fotografia do filme compensa pelos problemas supracitados. Ambientado em uma cidade qualquer do México, a sensação de solidão e indecisão se concretiza pelos planos abertos grandiosos misturados com uma falta de vivacidade notória, tanto através das cores pálidas quanto pelo fato dos locais serem pouco povoados. A temática que paira sobre a procura por um lugar no mundo funciona a partir do momento que o diretor opta por destacar a magnificência da vista perante seus personagens, mesmo que o local onde viveram suas vidas inteiras seja naturalmente pequeno e limitado por suas próprias condições (tanto geográficas quanto econômicas). Isso trouxe, ao fim de tudo, uma conexão emocional que esteve em falta durante grande parte do terceiro dia de festival.

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