Crítica | Nuvens Flutuantes
A flutuação COMO ÚNICA ALTERNATIVA
Mikio Naruse faz filme que mistura o Neo Realismo com o melodrama moderno
Apesar de ser amplamente considerado um grande nome do Cinema Japonês, é inegável que a carreira de Mikio Naruse não atingiu o patamar do trio Kurosawa-Mizoguchi-Ozu, esse último sendo inclusive comumente confundido com Naruse. E o curioso é que alguns de seus filmes parecem reconhecer internamente essa sensação, carregando consigo uma amargura que, combinadas ao estilo denso do cineasta, criam filmes emocionalmente aterradores.
Apoiado em um conceito de que as pessoas seriam as tais nuvens, o filme lembra o seminal Women of The Night (1948) de Mizoguchi, em como combina o drama de mulheres subjugadas em meio às catástrofes do pós-guerra enfrentadas pelo Japão. Pessoas que flutuam aqui e ali, sem nunca se encontrar, em meio a escombros físicos e sociais que me fazem cada vez mais apreciar o Neo Realismo Japonês.
Mas se o cenário lembra um, e o estilo lembra outro, a autoria de Naruse surge em momentos e escolhas mais específicas. A música quase provocativa, construída em torno de instrumentos de sopro, que rege a vida da protagonista anuncia desde cedo que não é um filme que emprega compaixão. Se Mizoguchi impactava ao tornar sua câmera inabalável, e Ozu trabalha com a mesmice do dia a dia até que momentos intensos surgem, Naruse cria um Cinema de distancias, que pode ser resumido em uma cena pequena, mas chave para todo o conflito de Nuvens Flutuantes.
A protagonista vê uma criança que, fosse Mizoguchi, entraria no quadro, fosse Ozu, emprestaria seu olhar ingênuo, e se fosse Kurosawa, faria algo marcante - e flamboyant - em seu curto tempo de tela. Sendo Naruse, o plano e o contraplano afastam a protagonista da criança, como que deixando claro que qualquer chance de uma vida comum fosse nula. A montagem aqui é uma questão política, uma distanciamento do que querem aqueles personagens e do que lhes é permitido pela sociedade.
E aqui e ali a modernidade, impulsionada por essa relação do olhar, invade o classicismo do filme. Um olhar emoldurado por uma janela reveladora, uma mão que pega dinheiro em uma cena quase óbvia de tão figurativa, uma troca de olhares que não bem seduz, mas corrompe a cena. Em um determinado momento, o protagonista, enquadrado, olha para a protagonista, quase na nossa posição, e seu olhar se desvia como que pulando um trajeto espacial obrigatório para que a acompanhasse. Inicialmente pode parecer um erro, mas quando repetido de maneira a inverter os pontos de vista, soa como um detalhe perfeito em um filme que parece abraçar o vazio fora de cena.
Mas mesmo traçando esse Cinema que preza por espaços e distâncias - essas até bem óbvias quando temos personagem se seguindo e se fugindo -, Naruse não deixa de ser um minucioso em como constrói cada quadro. Constantemente limitando o espaço de tela de suas personagens femininas pela figura masculina, que surge quase como uma moldura que as jogam para os cantos dos quadros, quando ele filma os homens os centraliza, enquanto quando filma as mulheres, as isola no quadro. É uma abordagem sufocante, tanto em suas conexões como em seus pontos distintos.
Isso aliado ao contexto social, histórico e cultural, e à fotografia de cinzas densos, torna Nuvens Flutuantes uma experiência exaustiva, que ainda se debruça sobre um melodrama de closes reveladores, extraindo emoções intensas - e quase exacerbadas - dentro de sua estética de opressão.
Em nenhum momento o filme cede, seja em seus quadros, no movimento entre estes ou nas pequenas sutilezas de sua encenação - a simples sugestão de que o protagonista seguiria sua jornada de flutuações se baseia em gestos e expressões da dupla principal, reconhecendo a trajetória da tragédia que aquele relacionamento sempre nutriu.
Não deixa de ser fascinante portanto como, no final, ele escolhe justamente a tragédia à amargura, em uma cena que não permite nada se não a constatação de que arredores tão fúnebres poderiam apenas resultar em dor, mesmo que o filme ao menos atenda aos maiores desejos de seus protagonistas. “Somos velhos demais para sonhar” um diz para o outro, enquanto tentam assegurar que, ao menos, não morreriam sozinhos.
Se houve qualquer tipo de conforto na morte de Yukiko, incapaz de superar as distâncias que a cercam (sua queda é literalmente causada por não conseguir chegar a janela), as nuvens carregadas de Nuvens Flutuantes fizeram questão de esconder.