Crítica | Melancolia

A PAZ EM MEIO AO CAOS

Em um de seus melhores filmes, Lars Von Trier pinta magnífico retrato sobre depressão


Sinto que tudo que Lars Von Trier faz é com o intuito de afastar as pessoas de seu Cinema.

Apesar de ter visto apenas quatro de seus filmes (Dogville, Ninfomaníaca, A Casa Que Jack Construiu e agora Melancolia), desde suas inflexões de Dogma 95, à sua paixão pelo choque como maneira de evocar os sentimentos mandantes de suas obras, suas escolhas surgem abrasivas tanto de um aspecto formal como literário. Suas personagens comumente evoluem narrativamente ao terem sua humanidade degradada, seja pelo abuso moral, sexual ou físico, praticado contra os outros ou sofrido por si próprias.

Mas o que o separa de um Gaspar Noé (cujos 15 minutos de Irreversível que assisti são mais do que o suficiente) é que dentro desse Cinema de códigos repulsivos, está uma estilização romântica e afetuosa, capaz de transformar um horror traumático em uma comédia do absurdo, um experimento extremo de abstenção em uma síntese inquestionável da sociedade, um desastre de choques em um drama comovente e, no caso de Melancolia, quase o contrário.

NO MEIO DO CAMINHO

Cada vez me fica mais claro que o Cinema, em seus cento e tantos anos de história, possui momentos chave que ecoam o passado enquanto prevem o futuro. Filmes matrizes, que sintetizam tudo antes teorizado dentro de sua respectiva proposta, e que movem a roda adiante servindo de referência mor para outros trabalhos. Vertigo, como defendido na tese de Luiz Carlos Jr., é o mais famoso e estabelecido, mas de outros que também se candidatam à esta seleta lista, Melancolia parece se apoiar de verdade nas linhas de Persona (e no Cinema de Bergman como um todo) e de A Regra do Jogo, com apenas algumas pitadas do filme de Hitchcock - e, porque não, de 2001 também.

Uma festa burguesa, luxuosa em todos os seus mínimos detalhes, ancorada em ritos e rituais, mas carente de afeto e humanidade. A câmera na mão distorce, ou desmascara, essa estilização em cena, tornando mundano e banal o que deveria ser um momento genuinamente romântico de união e celebração. Ela, a câmera, revela atores famosos na periferia de suas lentes, invade a privacidade daqueles que foca ao mostrar de relance aqueles que olham, cochicham e debocham, participa da festa como um convidado avulso que quer apenas observar a futilidade de um ato tão cômico como uma celebração do início do fim - para abraçar as ideias da mãe de Claire - sem abrir mão de se divertir e embriagar, nessa ordem, no caminho.

Se o filme de Renoir era extensivamente decupado, Melancolia parece emprestar mais de O Anjo Exterminador que, separado de Melancolia por apenas três filmes na Sight & Sound de 2012 (por curiosidade: E O Vento Levou, O Piano e Nuvens Flutuantes), é regido com controle absoluto de Buñuel, mas se permite movimentos de câmera vulgares que expõem a crescente desordem da alta sociedade.

Desordem essa que, no filme de Von Trier, parece ser o ponto de partida. Sempre há a impressão de que aquelas pessoas nem ricas são, mas apenas cumprem o papel naquele determinado momento. As roupas e os modos não lhes caem bem, e tampouco são eficazes em colocar suas máscaras sociais - diferente de Renoir, Buñuel, e até Kubrick e seu De Olhos Bem Fechados, Von Trier permite que cada ator reaja da maneira que melhor convir, em uma unidade individualista do elenco. Justine, no centro de tudo, a epítome disso: sorrindo sorrisos forçados e executando todas as passagens obrigatórias (das danças aos bolos) com o entusiasmo que recebemos aquelas visitas que nos fazem acordar mais cedo no domingo, a personagem é interpretada por uma brilhante Kirsten Dunst, que carrega consigo uma herança de suas performances com Sofia Coppola, mas que atinge aqui um nível próprio.

Nela Von Trier coloca não apenas os elementos pessoais da obra - ele mesmo uma vítima do mal do século 21, a depressão -, mas uma porta para a dimensão psicológica e sensitiva tão comum do Cinema de Ingmar Bergman. Embora Gritos e Sussurros seja a relação mais direta (este, outro filme que mistura as duas matrizes), logo Persona aparece na relação das duas irmãs: conforme uma se cala, a outra se revela.

O FIM COMO A ÚNICA SAÍDA

É na passagem para a segunda metade que a melancolia se desenvolve em um dos retratos mais fiéis da depressão que já assisti - ao menos, daquela que também me afligiu. No momento que suas coisas favoritas não mais apetecem, interessam ou entretem, a vida parece se tornar um fardo.

Por isso, talvez a colisão dos planetas não apenas como justificativa, mas potencialização do quadro de Justine seja o toque de gênio que adorna o filme. No momento em que as personagens percebem o ponto brilhante no céu, já sabemos de seu desfecho, graças à poética sequência de abertura, que corrompe não apenas o olhar (curioso e aflito para o céu), mas as expectativas e esperanças que nutrimos em relação a obra, que parece existir quase em uma dimensão paralela à nossa ciência de seu final. Os plano/contra-plano são momentos fortes, mas que se tornam tão insignificantes perante ao que já sabemos que a melancolia da diegese se instala em quem a assiste.

Mais brilhante ainda é o aparato criado pelo filho, para saber se o planeta se aproxima ou se afasta, uma representação física da falta de controle daqueles personagens sobre suas condições. O desespero na cara de Claire é enervante, mas justamente em seu momento de maior tensão, Melancolia parece encontrar sua paz. Em um de seus mais belos planos, Justine se deita nua sob a noite, na serenidade de um lago como que evocando a Vênus de Botticelli. Não há mais nela luta ou sequer angústia, o luto já passou, o que fica é uma apreciação sincera da vida que a cerca - e a fotografia abandona completamente os tons marrons da mansão pelo verde vivo que a cerca, enquanto as composições invasivas da festa dão lugar à uma sinfonia grandiosa que parece reger aquele - e todo o - universo.

Mas se a natureza conforta, é também porque a câmera decide se acalmar. Quando vemos as duas bolas brilhantes lado a lado, o quadro balança, mas em seus momentos derradeiros Von Trier nos permite vislumbrar com a mesma serenidade que Justine encara tudo aquilo. “Eu sei das coisas”, ela diz, e é o suficiente para que uma dimensão surrealista se instale, algo que não chega a ser mais espiritual do que bem uma “resposta” sobre o mundano. Ela sabe, e pronto.

Voltando ao filho, há algo de aterrorizante no entendimento das crianças, ainda mais porque este pode ser facilmente modificado com um ato tão simples como a imaginação. “Uma caverna?” e uma centelha de esperança.

E sentados ali, conectados com a natureza mas mais ainda com essa dimensão elevada de aceitação e apreciação que tem no afeto seu fundamento, vemos o momento mais bonito do Cinema de Von Trier. Rejeitando a solenidade e a pompa, e abraçando um ritual muito mais singelo e verdadeiro. Mãos dadas, olhos fechados. A melancolia não é vencida pelo fim, mas pela união como maneira de aceitá-lo.

Falo por mim, e apenas por mim, que é uma das poucas saídas que existem.

9

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