Crítica | Rio Vermelho
SIMPLICIDADE ÉPICA
Clássico de Howard Hawks é síntese do estilo e da grandeza do diretor
Dos cento e tantos grandes diretores, e dos mils e tantos grandes filmes que entendemos fazerem parte essencial do Cinema, é comum que um ou outro nos agradem menos.
Em cima disso, gosto de me considerar alguém que cada vez mais abre a mente para novos cineastas, ou para novas chances dos mesmos que anteriormente não me convenceram. Jean Renoir, por exemplo, não me pegou com seu A Regra do Jogo, mas gosto muito de A Grande Ilusão. Inicialmente, não suportei Yasujiro Ozu em Pai e Filha, hoje já é um dos meus diretores favoritos.
Eis que surge Howard Hawks, um diretor que parece desafiar a natureza da produção cinematográfica como forma de arte: um autor sem estilo definido, que não se prende a uma estética, ideia ou estúdio, e faz da liberdade em cena sua grande cartada. Como dizia Orson Welles, se Hawks era prosa, Ford era poesia. Eu complemento: se Hitchcock era expressão, Hawks era sentença.
UM CINEMA PRÁTICO
A Era de Ouro de Hollywood e seu realismo romântico fechado, do qual ele fazia parte e era proponente, passa longe de ser meu tipo de Cinema. Prefiro as subversões às convenções, o modernismo ao clássico, as manchas e as sombras à praticidade e a clareza.
A questão é que filmes como Paraíso Infernal, excepcional em seu virtuosismo, mas simplório em suas expressões, me agradam muito menos do que um Hitchcock, Ray ou Lang. A praticidade de um Rio Bravo jamais poderia me convencer mais do que o esplendor formalista de um 47 Ronin ou mesmo da autoria ostensiva de Os 7 Samurai, e apesar de preferir Uma Aventura na Martinica à um Casablanca, ainda ficaria com Falcão Maltês, Fuga Ao Passado ou Laura se estamos falando de Noir.
Meu Hawks favorito dos que tinha assistido era, portanto, Levada da Breca, das rom-coms mais divertidas e contagiantes e com uma performance apaixonante de Katharine Hepburn. Porém, se Hawks ainda era uma incerteza para mim, Rio Vermelho me colocou no sentido certo da correnteza.
E faz isso com uma linguagem bastante direta: apesar de brincar aqui e ali com algo mais dramático, ou mesmo com uma certa iconografia do Cinema ao seu redor, a força do filme está justamente na leveza da imagem aplicada por Hawks. Com uma premissa mais complexa e robusta que seu tratamento pelo diretor, Rio Vermelho é menos sobre todo o subtexto social e político envolvendo cowboys e nativos, ranchos e crises econômicas, do que sobre a conturbada relação pai e filho entre John Wayne e Montgomery Clift.
Chega até a ser meio óbvio o desfecho todo, mas não por isso a textura toda de passagem de bastão, de choque de gerações, funciona menos: a simplicidade da encenação potencializa a figura dos dois atores, e Hawks consegue criar uma sensação de movimento que parece reforçar uma naturalidade entre os dois. A premissa se confunde com a realidade, com a larga escala necessária para mostrar a movimentação do gado tomando conta da atmosfera do filme. Cada tomada extra deveria significar horas, se não dias, e o desgaste dessa produção intensa pode ser sentido.
REALISMO HAWKSIANO
Os momentos mais poderosos de qualquer filme de Howard Hawks, ao menos pra mim, são sempre aqueles que colocam em cheque seu virtuosismo e sua visão artística.
Vôos de avião, um leopardo solto, uma viagem de barco à noite. Todos mostrados de maneira clara e sem rodeios, mas que dentro da encenação proposta pelo diretor assumem esse caráter romântico. Aqui, são as centenas de animais atravessando rios e subindo morros, cenas tão diretas que soam quase como inflexões documentais, enfeitadas apenas o suficiente pela trilha para que a praticidade não se torne uma mera burocracia. São cenas que precisam ser filmadas, quase obrigatoriedades de suas premissas, mas que Hawks consegue transformar em um deslumbre bastante próprio.
A versão que assisti foi em cores, o que certamente adiciona um tom lúdico pra coisa toda, fugindo do realismo que o próprio Hawks queria. Mas mesmo que fosse sua intenção, ele jamais conseguiria fazer um Rosselini, ou sequer um De Sicca. Seus filmes no fundo acreditam em uma força mais inspiradora, o que os impedem de ficar enraizados nos escombros e desertos pelos quais se movimentam.
Se qualquer coisa, acho que o modo como o diretor lida com as relações pessoais ainda não me convence. Se em Paraíso Infernal há um aspecto quase anti-humano, e em Rio Bravo somos obrigados a engolir a rabugice glorificada do John Wayne, aqui ele até consegue contrabalancear com o charme do Clift, mesmo que a resolução final seja mais fabricada do que o resto do filme sugeria. É como se seus filmes sempre tentassem terminar em uma nota harmoniosa que, de certa maneira, contradizem um pouco a praticidade de suas narrativas. Por uma vez queria ver ele trabalhando com algo mais cético, algo que Ford conseguia tão bem.
Acho que até prefiro suas personagens femininas ao Ford no sentido da força que trazem, mas ainda assim são subjugadas à figura masculina - isso mesmo pra Hepburn que rouba o Levada da Breca, mas é inexplicavelmente apaixonada pelo charme mesa de sala de estar do Grant.
E talvez por isso seja impossível que um Hawks me pegue por completo. Apesar de seu estilo ser menos reconhecível, filme após filme parece que os elementos estão sempre ali, resultando em experiências que consigo gostar profundamente, mas não amar de verdade. Esse foi quase.