Crítica | Pushover
UMA SENSAÇÃO FAMILIAR
Em filme pouco lembrado, Richard Quine faz contribuição inestimável à dimensão hollywoodiana
O cinema, e mais em especial o cinema americano, e mais em especial o cinema americano dos anos 50, parece ter criado uma espécie de mundo privado no imaginário hollywoodiano, que muitos diretores tentaram acessar nas décadas seguintes, algo que alguns poucos conseguiram. Tarantino, por exemplo, passou a carreira inteira tentando, mas foi com Era Uma Vez em Hollywood (2019) que seus personagens pararam de ser criações de sua cinefilia obsessiva e passaram a ser avatares de um mundo antes habitado por deuses.
Mapear este mundo seria um trabalho inestimável, tanto pro cinema americano como pro cinema do mundo todo, pois a impressão é que toda a iconografia prévia parou no filtro dos anos 50. Foi uma década que viu muitos ápices, muitos grandes diretores experimentando, se permitindo deliciar com este mundo que a cada novo filme ganhava forma.
Em 1954, Hitchcock fez um filme capital para esta conjuração, justamente por ser sobre o papel do cinema nela: Janela Indiscreta torna o mundo comum o cinema, torna o familiar em fascínio, e o faz ao transformar a natureza de quem olha: não mais um espectador, mas uma estrela que nos empresta seus olhos para podermos enxergar. De acordo com Chris Marker, o outro lado do pátio é um espelho da vida do personagem de Stewart. Seria este mundo um reflexo?
Foi também o ano de Johnny Guitar, Jornada Para Itália, Magnífica Obsessão, Brigadoon. Filmes sobre o passado, sobre estar preso nele até que um se liberta (o segundo e o terceiro) ou se entrega (o primeiro e o quarto). Longe do hall de canonizados - de um ano que ainda conta com algumas obras primas de fora do círculo hollywoodiano (foi o ano que Mizoguchi fez Sansho, por exemplo) - está este pequeno filme de Richard Quine sobre um assalto que deixa um policial de vítima, e a investigação realizada por dois de seus colegas de uma suposta namorada do criminoso. E os dois realizam sua investigação por um meio similar e imediatamente reconhecível: instalados em um prédio vizinho, a dupla espiona a bela Lona McLane até que um dos homens começa a se interessar… por sua vizinha. O outro dos investigadores, porém, já cruzou a rua: Paul teve a missão de se aproximar de McLane para tentar descobrir informações, mas acabou se apaixonando após um jantar que se transformou em três dias.
A evidência dos dispositivos teóricos (a dualidade nas duas vizinhas; a paixão do voyeur; o papel da encenação) pode até se afogar nas limitações práticas da mise-en-scène de Richard Quine (a distância e o posicionamento dos prédios, os planos de dentro do carro, a cenografia esvaziada), que teve aproximadamente 40% do orçamento que teve Hitchcock, mas há um charme na simplicidade que aproxima o filme do noir e que, mergulhado na noite, aponta para um expressionismo tardio.
E se toda essa rede já é devida e puramente cinematográfica, nos significados e significantes, na dialética entre arte e produção, no diálogo entre passado e presente, o que torna este filme uma contribuição inestimável para o tal imaginário, e não apenas um de seus produtos, é a jovem que é “apresentada”.
É claro que o primeiro papel de Kim Novak seria como uma femme fatale. É claro que seria em um filme análogo a Hitchcock. É claro que sua primeira aparição em cena como personagem corporificada (pois havia antes atuado como figurante) seria saindo de um cinema. Do lugar que gerou todos estes grandes clássicos que listei acima, e que também gerou Detour (1945), Kiss Me Deadly (1955), e Peeping Tom (1960), e The Passenger (1975), e Body Double (1984), e De Olhos Bem Fechados (1999), e Cidade dos Sonhos (2001), e Garota Exemplar (2014).
E que, é claro, gerou a imagem mais imaculada de todo este grandioso e inigualável período.