Crítica | Oppenheimer (2023)

Existem os filmes e existem suas recepções, e se algo aprendi nestes dois anos estudando espectatorialidade, é que um constroi ao mesmo tempo que justifica o outro. À altura do lançamento de Barbie e Oppenheimer, naquele fatídico 2023, não assisti nenhum dos dois filmes, embora tenha achado todo o movimento ao menos curioso. Mais parte da minha jornada pela história do cinema que pelo meu afastamento do circuito comercial, acabei os vendo tempos depois, e com mais de um ano entre um e outro.

O benefício é ver cada um dos filmes fora de seus lugares como fenômeno, não se deixar levar pelo coletivo e por qualquer leniência que, como diz a espectatorialidade, faz parte deste processo contínuo e integrado. Para minha surpresa (e que comprova que era mais inocente e não previ isso em 2023) assisti duas iterações do mesmo filme: tanto Oppenheimer como Barbie são um produto do capitalismo, defensores (conscientes, mas não intencionados, se isso é possível) do modelo vigente de governo norte-americano, construídos com a mesma lógica de produção expansiva e megalomaníaca que encara um filme não como um processo artístico, mas como um projeto babilônico. Não há para Gerwig, como não há para Nolan, a mera possibilidade de se descobrir algo enquanto filma: eles partem com cálculos quase matemáticos para o set, planos em uma checklist, porque sufocam cada cena, porque cada plano não dura mais que três segundos, porque cada quadro nada mais é que um rosto com um fundo desfocado em um mundo supostamente recriado com papel machê, mas cujo seus realizadores ou são incapazes, ou nem ao menos fazem ideia de como recriar cinematograficamente.

E a incapacidade de Coppola (e Scorsese) de questionar isso é preocupante, pois são filmes com um trabalho cenográfico inferior a alguns dos enlatados da Marvel. Inclusive, tanto estes, como Assassinos das Luas das Flores (2023) e Pecadores (2025) (para trazer mais um “mestre” e mais um “jovem promissor”) reconstroem uma época, mas são absolutamente incapazes de se sensibilizarem a ela, tanto dentro de suas cenas (no filme de Nolan, os atores mal tem tempo de falar suas falas no plano, o que dirá gestualizar, interagir, reagir) como em seu aparato (a fotografia cristalina, os tons artificialmente manipulados, a montagem frenética, os planos que entregam câmeras e trucagem contemporâneos). São filmes de seus diretores (e, no caso de Gerwig, de sua empresa), que respeitam a si próprios antes de respeitarem o material que “querem” filmar, nos quais o anacronismo é um acidente fora da folha de cálculos, e não um objetivo.

Assistindo a Oppenheimer me peguei pensando constantemente em Heaven 's Gate (1980), um épico da expansão de Cimino que constantemente remonta para a pequenez do específico: das multidões e da reconstrução rigorosa de um lugar por meio das ferramentas enganadoras do cinema (o figurino, a fotografia, a cenografia), mas também do gesto e do toque, de um plano em que o movimento é livre como uma dança, e vemos o vento e a pele, pois é na câmera e como essa captura o espaço que seu diretor pesa sua mão autoral. Cimino deixa seu filme respirar, ao mesmo tempo que o conduz como um maestro. Já Nolan confunde dirigir com sufocar, com calcular, com extrair toda e qualquer liberdade de cada cena para que o resultado responda apenas à ele próprio.

Ouvi falarem em “estudo de personagem”, mas o que Nolan faz aqui é o equivalente a um resumo bagunçado de arquivos históricos. Faz mais sentido pensar em um trailer de três horas para um filme de oito, como a trilha incessante e sempre ansiosa pela próxima cena aponta, e como os closes do rosto de Cillian Murphy (para sua consideração) escancaram - tal qual seus olhos arregalados, como que prestes a terem uma revelação, por toda a duração do filme.

Porque quem é este Oppenheimer que Nolan “estuda”? Onde está a grande “atuação” de Murphy que, como os outros, só tem tempo de falar suas falas antes que o próximo corte aconteça? Eu contei: ele não respira e mal pisca durante todo o filme. Ele fuma, mas não traga. Ele transa, mas não goza. Seu casamento (Emily Blunt está tenebrosa) só existe com algumas frases pontuais de efeito. O que se sabe sobre Oppenheimer é o mesmo que se saberia ao ler sua página na wikipedia.

O personagem se torna, então, um mero instrumento da máquina, o que poderia com certeza ser algo interessante se o filme não fosse, pelos motivos do parágrafo acima, completamente inconsequente e inconsciente de sua posição em relação a bomba. Algo que se torna indiscutível quando o plano mais bonito da filmografia de Nolan é o testemunho da destruição causada pelo teste (e que um soldado pergunte pro outro onde quer, e o cara diga na perna, e depois vejam o cogumelo subindo, é mais do que apropriado). “Mas o filme condena…” mentira. O filme pode condenar o uso, mas vangloria a ideia de um homem com toda a inteligência do mundo e uma burrice muito parecida, se pensarmos, com a de Nolan. Precisa ser alguém incapaz de contatar este mundo, um homem que para na beira do lago para falar com uma imitação ala novela da Record de Einstein mas é incapaz de olhar as árvores, um homem que arregala os olhos, mas não vê, para achar que a bomba atômica seria a salvação da humanidade.

O que torna o filme exatamente o que Nolan queria: um grande atestado de seu poder sobre a máquina, de ter dezenas de atores famosos falando minúsculas falas (nesse sentido, Wes Anderson está mundos a frente), de engolir toda e qualquer humanidade na montagem, de gastar milhões de dólares e mover a quantidade de pessoas que habitavam aquela pequena cidade (que muito falam, mas nunca filmam em nada mais do que movimentações dos tantos atores pra lá e pra cá como um fundo verde) para realizar um filme que, no fim, só fala sobre ele próprio.

E sobre o estado catatônico no qual se encontra boa parte da crítica, de ser incapaz de apontar qualquer coisa em um filme desse tamanho por medo de alguma coisa. De seus leitores e espectadores, talvez, que, assim como a humanidade nos filmes de Nolan, são mais uma vez tratados como notas de rodapé.

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