Crítica | Pecadores (2025)
DE VOLTA ÀS ORIGENS…?
Em filme ambicioso, Ryan Coogler volta a fazer cinema, esbarrando no tempo
Dez anos depois, é possível ter uma ideia melhor de como Creed (2015), segundo filme de Ryan Coogler (o primeiro havia sido Fruitvale Station, 2013), se encaixa em um período tão curioso do cinema norte-americano. Por um lado, mais um de tantos reboots e remakes, mas que justamente ao conservar a estrutura clássica e propor um embate entre a herança dos filmes estrelados por Stallone (o grande drama de Adonis é a sombra do pai, com quem luta por meio de um vídeo) traz um vigor necessário a um país que já parecia esquecer algo tão característico. Um texto, à época, falava em melhor filme de “underdog” desde Rocky, e não deixava de ser.
Curiosamente, ainda mais vide o primeiro filme de Coogler (Frutivale Station é inspirado em um caso real: a morte de um jovem negro pelas mãos de um policial), Creed não tenta usar seu protagonista como discurso, e sim como uma possível conciliação. Entre presente e passado (Stallone perguntando que nuvem?), entre preto e branco (a dissonância entre as origens de Adonis e a vida de burguês que leva), entre o pastiche de Rocky e os tempos pseudo-verossímeis do pós-2008 (a luta em plano sequência é basicamente uma união das duas coisas).
Michael B. Jordan se tornou estrela, símbolo sexual e Coogler logo ganhou uma centena de milhões de dólares para supervisionar Pantera Negra (2018). Então dentro da Marvel, um possível autor é sufocado, seus traços mais interessantes (a perambulação e interação de seus personagens por cenários conhecidos do cinema) são submetidos ao tratamento de CGI de vitrine que torna Wakanda um monte de cores tão distantes de seus atores como de nós, espectadores, e lá se vão dez anos desde o último filme de Ryan Coogler.
Estaria esticando se dissesse que Pecadores é um comentário sobre a filiação temporária de Coogler com a empresa da Disney, mas quando seus protagonistas (uma dupla de Michael B. Jordans) iniciam o filme retornando de uma estadia em Chicago - onde enriqueceram com o crime e agora querem usar o que aprenderam para empoderar os negros de sua pequena cidade no sul dos Estados Unidos - é possível ao menos pensar. Até mesmo o prefácio (que ao fim se revela prólogo), do jovem entrando na igreja manchado de sangue, segue a mesma linha.
Brinque com os brancos, e você vira impuro.
Em seus melhores momentos, Pecadores é um filme que reivindica ao mesmo tempo que reconhece a impossibilidade de tornar negro o que um dia foi branco: quando os irmãos se dão conta de que metade do dinheiro que ganharam na festa é de plantação, uma pequena crise se estabelece. E são muitas as que Coogler pincela antes dos vampiros chegarem: um relacionamento inter racial, outro marcado pela superstição e pela perda, a economia local baseada em negócios de famílias de imigrantes. Visualmente, ele ao menos desfoca um pouco menos a câmera do que se tornou costume, nos permitindo ver em alguma extensão o funcionamento da pequena cidade: enquanto se conversa em primeiro plano, as plantações de algodão se estendem ao fundo, alguém caminha carregando algo, outros conversam.
É uma primeira hora ao menos intrigante, que estabelece um filme que infelizmente não acontece. Pois logo chegam os vampiros e, embora aprecie o uso da mitologia (o precisar ser convidado a entrar e as soluções que Coogler tem para ilustrar isso no espaço dos planos, e na conexão destes planos), o que parecia ser a história da América em um recipiente representativo, uma retórica dicotômica e paradoxal por meio de uma mudança no cotidiano, logo se torna discurso e obviedade. Sim, os vampiros são brancos. Sim, a primeira infectada, e que corroi o restante da festa, é branca. Sim, os brancos haviam vendido a propriedade pros irmãos como uma emboscada da KKK.
Os melhores momentos são justamente aqueles onde o discurso do filme fala por soluções de imagem, por sugestividade que quase se torna nuance: o voo do vampiro que corta para o salto de uma moça dançando, a reza que é repetida em coro pelas criaturas, o figurino de Michael B. Jordan e Hailee Steinfeld quando retornam ao final do filme, a linguagem imprópria e o dialeto, ambos sanitizados (obviamente) nos filmes da Marvel. Gosto da inventividade com o duplo, como os recursos práticos e digitais são submetidos à lógica da cena e não o contrário: não é como se Coogler tentasse apontar pro fato que tem dois MBJs, fazendo com que cada um tenha suficiente individualidade para que suas presenças em cena sejam aceitas não apenas como gimmick, mas como traço inerente ao filme.
Já a balbúrdia, além de confusa e mal iluminada, aponta para quase ambiguidades, que Coogler nunca desenvolve para dizerem qualquer coisa. Pois se os vampiros ecoam a reza, estaria o filme criticando a adoção do cristianismo por parte da cultura negra? Talvez o plano que indique que um dos B. Jordans encontrou o filho morto no céu, no colo de sua companheira (considerada bruxa), remeta a priorização da matriz africana… mas então a única solução do negro é morrer?
À altura da metade do filme, quando o jovem Sammie toca sua música e um portal parece se abrir no espaço tempo, Coogler assume um anacronismo temporário, que joga o filme em uma fotografia de David LaChapelle. É uma decisão ousada, tirando o filme do neo-classicismo, que deixa de ser sobre fatos e acontecimentos e então se torna sobre sensações (a câmera lenta). O que ocorre, porém, com Coogler e com diretores muito mais experientes, é uma falta de visão e de perspectiva justamente em um filme sobre elas. Pois é impossível filmar uma época, e entrar nessa época, com os signos visuais da contemporaneidade, e Coogler é incapaz de apagar a máquina (são muitos planos, muitos contraplanos, muitos cortes e movimentos plásticos, muita evidência do peso de um set milionário).
Ao menos Pecadores comenta sobre essa máquina, sobre a impossibilidade de se fazer filme apenas com dinheiro preto, sobre se fazer um filme negro sem a influência branca (a sequência tarantinesca torna isso evidente). Pecadores, afinal, custou 90 milhões de dólares, e seu diretor, que saiu para a cidade grande há mais de dez anos, dá sinais claros de síndrome de repatriação.