Crítica | O Fim do Verão (1961)

Assistir um filme de Yasujiro Ozu é como visitar a casa onde você passou a maior parte da infância, reencontrar as pessoas que ainda moram na volta, explorar os mesmos caminhos que você conhece de cor mas que ficam adormecidos em sua consciência.

A sensação que vem a seguir é a de que você nunca vai ser tão feliz como foi quando aquela era a sua vida, e de que o tempo passa, e as pessoas envelhecem, e morrem, e novas pessoas se encontram e mudam rumos e trajetórias, misturando memórias e formulando novas experiências para aqueles que vierem depois delas. No fim, sua casa continua lá, e mesmo que seja vendida para outra família, ou empresa, ou apenas desapareça e volte a ser natureza, aquele espaço fica guardado, de alguma maneira, e pode ser re-acessado vez que outra no meio da vida cotidiana mais branda, menos colorida, menos marcante.

E logo temos que voltar aos outros filmes, os que não são de Ozu, que nos fazem entre tantas outras coisas acelerar nossa respiração, e sentir o movimento do mundo enquanto ele acontece. Com Ozu, sentimos o espaço entre um momento e outro apenas quando este já está longe no tempo. Assim como o plano final de Early Summer (1951), quando a câmera desliza e vemos os campos passarem em velocidade, mas a montanha segue quase estática ao fundo.


Na língua extinta do povo indígena da Terra do Fogo, arquipélago ao sul da América do Sul, havia um termo com um dizer muito específico, que sobreviveu ao isolamento de uma língua sem parentesco com nenhuma outra conhecida. Mamihlapinatapai significa, permitida tradução e interpretação, “o olhar entre duas pessoas que desejam a mesma coisa, mas esperam a iniciativa do outro”. Conceito mais do que moderno, mas que pôde ser resumido em uma única palavra apenas por este povo meridiano, que jamais conheceu a modernidade.

Não é preciso pensar muito para perceber como o termo é presente no imaginário do cinema. De Desencanto (1945) à Encontros e Desencontros (2003), de Primavera Numa Pequena Cidade (1948) à Vidas Passadas (2023), de Love Affair (1939) à Retrato de Uma Jovem em Chamas (2019), as mais potentes histórias de amor do cinema colidem no olhar entre duas pessoas e na distância de um amor impossível. Em alguns destes, a distância é ultrapassada. Em outros tantos, ela se torna um momento, um episódio isolado em toda uma vida.

Me interessa comentar então uma cena, próxima ao início de O Fim do Verão, que comprova como, dentro das elipses que filma (ou seja, dentro do espaço virtual que seus filmes percorrem pelo tempo), Ozu é capaz de tecer o mundo melhor do que outros diretores (e alguns deles, grandes diretores) tentaram filmar.

Na cena, dois jovens, um homem e uma mulher, conversam sentados lado a lado em uma estação de trem - o mais romântico e trágico dos cenários no cinema que Ozu, um grande cinéfilo, está mais do que ciente. Na tensão que existe entre os dois, a distância que os separa é fisicamente ínfima, basta se inclinarem a frente. O espaço entre eles, no entanto, tem toda a extensão do Japão e sua sociedade costurada com tradições, da impossibilidade de romper com o que deve ser mantido. Teramoto está se mudando de Kyoto para Sapporo para se tornar professor, enquanto Noriko seguirá na casa do pai enquanto este tenta encontrar um marido para ela.

Durando pouco mais de dois minutos, a cena é tanto um exemplo direto do estilo de Ozu, como de todo o universo que ele evoca. Quase como átomos (ínfimos, mas com muito espaço vazio entre si), as cenas de Ozu parecem fazer parte de uma equação matemática, uma decupagem analítica que divide o espaço de maneira ritmada, acompanhando a trilha sonora mas também o ritmo do mundo. E é no espaço entre estas batidas, no silêncio entre as notas, que suscita o que alguns chamam de transcendental. Acho que prefiro chamar de magia, mesmo.

Dissecando a cena, vemos que ela começa na cena anterior: quando Teramoto e Noriko jantam com alguns amigos em um reencontro dos tempos de escola. Eventualmente, começam a cantar uma música em grupo (de nome sayonara, se não me engano), e Ozu logo isola Teramoto enquanto este olha para Noriko e, no contraplano, a faz perceber o movimento ao retribuir o olhar com um sorriso. A cena termina com o corredor vazio que, para Ozu, é um indicativo de que iremos trocar de ambiente.

Há aqui uma espécie de ruído entre seu estilo de montagem e os planos que filma: se o corte é seco, a transição da cena é mais suave, com a cantoria dando espaço gradativamente a uma composição clássica, não diegética, semelhante às que ouvíamos no cinema clássico hollywoodiano. As duas imagens que se conectam, no entanto, apontam em outra direção: em plongée isolado, vemos uma torre com luzes eletrônicas. Em apenas 20 segundos, Ozu nos leva ao passado enquanto aponta a iminência do futuro. A tradição pendendo para a efervescência da modernidade.

Vamos então da torre para uma estação de trem, onde algumas pessoas sentam e uma mulher, com um vestido não muito diferente daquele usado por Maggie Cheung em Amor À Flor da Pele (2001), passa em uma caminhada obstinada. A seguir, vemos os dois personagens sentados em um banco, em um plano que nos coloca às suas costas - atentemos para como Ozu prefere enquadramentos que se encaixem na arquitetura japonesa, e não em seu industrialismo: a torre é vista de baixo, de onde fica o chão, e se a câmera enquadrasse a dupla de frente, estaríamos basicamente nos trilhos do trem - Em sincronia, ambos olham um para o outro, e em seguida desviam o olhar (não vemos o rosto de Teramoto, mas o de Noriko sim) para o chão.

Uma sucessão de contraplanos característicos de Ozu se seguem, com os dois comentando sobre a mudança de Teramoto e como gostariam de se ver novamente. Ou gostariam mais do que isso, mas guardam isso nos olhares e gestos. Colocando os fotogramas lado a lado, é curioso como os dois parecem estar de frente um para o outro.

Após a breve conversa a câmera volta para suas nucas e, conforme ouvimos o barulho do trem, o papel dos dois na musicalidade da cena é virar o rosto, em reação, e se levantar do banco de maneira que invejaria Jacques Demy e Vincente Minnelli (seriam os filmes de Ozu, musicais?).

Um plano subsequente mostra as pessoas se levantando e indo em direção ao trem. Outro, de outro ângulo, o reflexo das luzes do trem na estação vazia. O que, para Ozu, é um indicativo de que iremos trocar de ambiente. O plano seguinte: um relógio.

A cena termina com os dois se separando, para nunca mais se encontrarem em frente às câmeras. Mais ao fim, após a morte de seu pai, Noriko decide visitar Teramoto, revelando em conversa com sua irmã à beira de um lago, após o velório. Ambas são vistas por uma outra mulher, de cima e, em outro local do rio, dois personagens não nomeados comentam sobre como alguém deve ter morrido.

Se a magia do cinema de Ozu surge nos espaços de silêncio, sejam eles sonoros, visuais ou, em seus maiores momentos, ambos, seu maior poder talvez ainda seja como dilui esta magia na imensidão do cotidiano. Em como as ramificações das ações e não ações de seus personagens refletem e acarretam as mudanças pela qual passa todo um país, e que podem ser resumidas e representadas em observações e momentos isolados. Nenhum cineasta foi tão capaz de filmar o infilmável do mundo. Mais do que transcender, Ozu fez filmes que residem no mundano, no chão, no tatame.

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