Crítica | Irma Vep
“Irma Vep” é o terceiro filme de Olivier Assayas que assisto e, com isso, posso afirmar confiantemente que o diretor acertou pela terceira vez seguida (sendo os outros dois filmes “Acima das Nuvens” (Clouds of Sils Maria) e “Personal Shopper”.Para a minha surpresa, não gostei de um filme do Paul Thomas Anderson pela primeira vez. Não só surpresa, mas grande decepção também.
Assayas é um mestre na arte de misturar ficção e realidade, claramente influenciado pela obra de Kiarostami, um dos gênios da caracterização. Em “Irma Vep”, somos presenteados com um metatexto de alta complexidade. Trata-se de um filme sobre a criação de um filme, que é, na verdade, o remake de um filme que, de fato, existe, sendo considerado um dos grandes clássicos do cinema mudo: “Os Vampiros” (Les Vampires). A obra gira, majoritariamente, em torno da personagem interpretada por Maggie Cheung, que é, ninguém mais, ninguém menos, do que ela mesma, atuando como a estrela do remake em questão.
O filme é impecável ao embaçar as linhas entre o que é ou não é real. A resposta, entretanto, não reside em realmente distinguir a ficção da realidade, porque, ao fim, isso não importa. O filme merece ser interpretado como uma experiência meditativa que engloba os pensamentos e dúvidas do seu próprio criador, seja sobre o cinema e a indústria cinematográfica da época, seja sobre a vida, encontrar raison d'être, amor, verdades, mentiras e muito mais. O intenso movimento das câmeras também aprimora o aspecto realista do filme, reverberando ambientes frenéticos e desordenados.
Maggie exala o status de uma diva, como uma clássica femme fatale, e esse aspecto é altamente influenciado pelo fato de que ela era a futura ex-esposa do diretor. A habilidade necessária para atuar num papel sobre você mesmo não deve ser subestimada, apesar de Cheung fazer parecer um trabalho fácil. Maggie é a estrela brilhante de “Irma Vep”, e, como Irma Vep, a personagem, é também a brilhante estrela do filme sendo filmado dentro do filme. Essa linha excepcionalmente fina, uma zona cinzenta entre mundos, torna o filme absurdo ao mesmo tempo que realista, remetendo ao “Close-Up” de Kiarostami nesse aspecto.
A personagem principal demonstra fortes sentimentos de desconexão, primeiramente por conta da barreira linguística que precisa enfrentar, mas também, principalmente, em decorrência da sua postura desprovida de preconceito, oriunda de alguém com vontade de seriamente trabalhar em um filme no qual realmente acreditou. Essa construção de Maggie, que enfrenta um microcosmo tóxico e egoísta, a torna especialmente real e relacionável. A sua jornada é efetiva em trazer tristeza ao espectador, mas também, e em maior quantidade, alegria, enquanto acompanhamos a sua não desistência diante de toda a sabotagem acontecendo ao seu redor.
Algumas cenas são dignas de destaque, ao carregarem relevante significado às temáticas do filme. A que ocorre no hotel, na qual Maggie basicamente se transforma em Irma Vep, transparece sinceridade e evoca intensidade. O silêncio de Cheung, somado à sua atitude disciplinada como a de um ninja, é suficiente para comunicar os seus sentimentos e sua vontade. De outro lado, em uma cena mais focada em diálogo, Maggie está disposta a responder um repórter desagradável por meio de réplicas coesas, defendendo, com veemência, a importância da variedade no cinema. É uma passagem honesta e realista, especialmente porque o espectador sabe que Cheung, a atriz da vida real, é isenta de preconceitos com relação a filmes, tendo atuado em papéis importantes em filmes que vão de artes marciais (wuxia), a romances (incluindo um dos mais marcantes de todos os tempos) e até filmes experimentais e pós-modernistas, como “Irma Vep”.
Então, o que significa fazer um filme, ou, quais são os filmes que devem ser feitos? Não há resposta lógica a essas perguntas e nunca haverá, é o que “Irma Vep” comunica com sucesso. Um sujeito somente poderá encontrar a si verdadeiramente ao tentar criar o seu próprio trabalho, e é o que Assayas fez. É também o que o diretor do remake (performado, inclusive, por ninguém mais que Jean Pierre Léaud, também conhecido como Antoine de “Os Incompreendidos” [Les quatre cents coups], 37 anos depois) fez, presenteando-nos, ao final da obra, com uma experiência cerebral que desafia o que o cinema deve ser.