Crítica | Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel

A MAGIA DE OUTRORA

20 anos após seu lançamento, A Sociedade do Anel já alça voos de clássico, mesmo que seu legado tenha sido diminuído


Um dos maiores medos da vida adulta é re-assistir os filmes que antes amava e ver que tudo não passava de um misto da visão mágica da infância e da nostalgia que sentimos por ela. Já um dos maiores prazeres é retornar para estes universos e ver que, apesar de tudo parecer diferente - quando se é pequeno, uma pequena árvore parece tocar o céu -, eles continuam sendo lugares para onde gostamos de fugir.

Que melhor lugar que o Condado e seus campos verdes, não sei. Li os livros de Tolkien, e apesar dos fãs mais insuportáveis discordarem, é difícil desassociar as imagens descritas pelo homem das filmadas por Peter Jackson, um cineasta que ama tanto os filmes que faz quanto as pessoas que os assistem (quando ele acerta, no caso). Dos cenários cuidadosamente construídos, aos adereços que preenchem todas as cenas, às locações externas que devem ter envolvido uma procura intensa dos produtores e que jamais soam como o “nosso mundo”, a Terra-Média ganha vida com sua história própria, que não precisa ser verbalizada para que entendamos que tudo ali vem de algum lugar - e vem mesmo, basta ler os materiais adicionais.

Não que essa fidelidade tenha tanta importância, filmes têm de funcionar por si próprios, e alterações na trama não são só permitidas, como necessárias para que a transição de uma Arte à outra funcione. Portanto não ligo que foi Arwen e não Glorfindel quem salvou Frodo, ou que nunca cruzamos com o enigmático Tom Bombadil, ou que é Frodo quem diz isso, Gandalf que diz aquilo, etc.

O que importa é a aura, ou melhor, auras que Jackson consegue evocar. A de um lugarzinho perdido no meio de um mundo desgastado, de uma toca no chão que serve como refúgio e aconchego para os perigos ao redor. E, quando saímos dessa toca junto à Frodo e Sam, todo o senso de jornada que torna O Senhor dos Anéis um dos trabalhos mais importantes do século 20. No caminho eles encontram vilarejos atolados, ruínas de um passado glorioso, minas assombradas pela morte e o vazio, cidades Élficas que soam como pinturas que levam ao paraíso.

Como apontado por Pablo Villaça, a imagem da comitiva caminhando sobre montanhas deveria ser a marca da série. Homens, Anões, Elfos, Magos e Hobbits, todos percorrendo um caminho gigantesco por escolha, em busca de um bem maior.

UMA JORNADA PELO FIM

Por cada um desses lugares, o deslumbre, mas também a certeza de que é uma jornada pelo fim, essa talvez a qualidade mais assombrosa de toda a trilogia. Não há sorriso de admiração que não termine com um olhar preocupado, e Jackson estabelece esse tom logo no início.

A abertura na voz de Galadriel (o trabalho de Blanchett aqui é surreal), falando de um mundo que mudou, de um passado perdido sem ninguém vivo para dele lembrar, seguido do tema em violinos que canta a decadência de um mundo que a cada dia vê a magia desaparecer e agora está fadado a uma disputa entre Homens e Orcs. Se Harry Potter é uma luta de reivindicações contra o passado, em Senhor dos Anéis este passado vem não para lutar, mas para apagar tudo que um dia foi, enquanto o futuro é tão sem brilho que a certeza de sua existência torna tudo escuro.

Essa angústia que permeia toda a obra nos faz celebrar os pequenos momentos de leveza, de uma brincadeira de espadas à um reencontro em câmera lenta, sob a sépia que preenche toda Valfenda. Tudo sempre filmado da mesma maneira, simples, quase que artisticamente documental, dando espaço aqui e ali à um close mais rebuscado, como o de Gandalf quando Frodo decide seguir a jornada (e há um erro de continuidade nessa cena! Pois no próximo plano o rosto de Gandalf vai de um orgulho penoso à espanto. Não que atrapalhe a experiência, mas agora é impossível não perceber).

Jackson acerta também em como registrar os combates, pois mesmo que abuse da câmera tremida e lenta aqui e ali, a necessidade das cenas é sempre sentida, nunca sendo vendidas como violência gratuita ou mera distração dentre os longos momentos de viagem e conversa. Mais importante que isso, há a construção do mito, principalmente nas figuras de Legolas e Aragorn, com a trilha subindo nos momentos certos para gerar empolgação, esta que é usada de maneira quase ingênua, provocando uma relação pura entre o espectador e os aspectos fantásticos da narrativa.

COMO QUALQUER OUTRO DIA NA TERRA-MÉDIA

O mais impressionante de voltar esses 20 anos no passado é ver como, apesar de uma abordagem fantástica e dramática de maneira que não seria possível nos dias de hoje (imaginem uma audiência ser convidada a sentir sem uma piadinha no meio…), Senhor dos Anéis não deixa de ser simples. Utilizando efeitos de computador apenas quando necessário, a encenação de Jackson compreende a câmera na mão em diversos momentos, passeando pelos cenários cuidadosamente construídos e descobertos, e nos permitindo visualizar a unidade de seus personagens com eles. Não como os Vingadores ou a Liga da Justiça, o elenco aqui não tem de reagir a coisas que serão adicionadas depois, mas trabalhar organicamente com tudo que há a sua volta. Mesmo os Orcs são feitos com maquiagem, o que aumenta a suspensão da descrença e permite que o filme se permita ao incluir criaturas como o Troll e o Balrog (esse, apresentado depois de uma aula de antecipação e escala) sem que a magia seja quebrada. Inclusive, sempre que Frodo põe o Anel causa espanto por seu efeito tão abrupto em uma encenação tão simples.

Mais prazeroso que a praticidade das cenas é como Jackson, trabalhando em sinergia com a trilha de Howard Shore, não se acanha em explorar as emoções afloradas que a obra de Tolkien proporciona. Do agouro à calmaria, da honra à morte, é um filme que resgata também o poder do épico no Cinema. A própria maneira como os personagens falam é entoada, quase como heróis de uma tragédia grega, e basta um simples close, uma subida na trilha, uma câmera lenta, ou um efeito sonoro isolante para que o impacto dos momentos seja sentido. Frodo reage em excesso a um ferimento, Aragorn fala com as décadas de exílio em sua voz, Gandalf esbraveja com seus milênios de sabedoria, Galadriel admira e assusta com sua beleza e olhar etéreos. São personagens que vivem em excesso, em um mundo que coroa mitos, lendas e heróis.

O que culmina na queda de Boromir, este o momento mais implacável do filme. De sua rápida e exaustiva decadência pelo Anel, à honra que demonstra até o último suspiro. Um arco quase isolado, mas que compreende todos os aspectos conceituais e formais dos filmes (e dos livros). Como já sabia do retorno de Gandalf quando assisti os filmes pela primeira vez, é uma cena que me pega mais por seu valor icônico (YOU SHALL NOT PASS!) do que emotivo, mesmo que dentro da narrativa o impacto seja prontamente sentido. Alterando o fim do “livro 1”, Jackson acerta o momento de separar a Sociedade, indicando para as trevas cada vez maiores que aguardam na jornada de cada um.

É uma pena que, nesses últimos 20 anos, o Cinema tenha se tornado cada vez menos um lugar para entrarmos em novos mundos. Que os jovens de hoje considerem uma jornada menos interessante do que um festival, que a magia tenha sido reposta por uma tecnologia barata, que o prazer da descoberta venha por meio de trailers e teorias de YouTube, e não nas telas de Cinema e páginas de livros. Algo que faz a trilogia envelhecer ainda mais, para uma época tão distante, que acabe se tornando, nas palavras de Galadriel, o mito que é. Uma pena que a maioria não perceba isso.

E assim, o Condado com seus raios de sol abundantes, sua mesmice milenar que esconde no dia a dia surpresas magníficas, assume dentro da própria história o papel que assume para nós. Cansados de um mundo real cada dia mais cinzento, retornamos para os dias ensolarados de nossas infâncias, em um mar de memórias de momentos cotidianos que guardam surpresas magníficas, prontas para serem redescobertas.

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